Bienal de Cerveira perdeu a "patine" do passado


Por estes dias voltei a Vila Nova de Cerveira e à Bienal de Arte sonhada e idealizada por Jaime Isidoro, mestre de vários ofícios, fundador de uma iniciativa única e arrojada para a época, 1978, quatro anos depois de Abril e da poesia ter andado pelas ruas. Naquele tempo, as capelinhas de Lisboa olhavam com mais desconfiança do que hoje qualquer iniciatica cultural feita na província, mas o aguarelista do Porto não desistiu do projecto de transformar o pacato lugar do Alto Minho na "Vila das Artes".
Entre homenagens a Sarah Affonso e a Almada Negreiros, o mentor da única galeria digna desse nome no Porto (a Alvarez de boa memória) conseguiu em pouco tempo a adesão de muitos amigos, gente das artes e das letras, nomes já consagrados da pintura como Armando Alves, Justino Alves, João Dixo, António Quadros, Jorge Martins, Eurico, Espiga, Cargaleiro, Júlio Resende, Eduardo Luís, António Pedro (o pintor surrealista e encenador do TEP), Luís Demée, Paula Rego, António Sampaio, entre muitos outros e dar visibilidade ao trabalho dos artistas de assinatura reconhecida e outros à procura de notoriedade.
Naqueles tempos toda a gente transportava doses infinitas de generosidade, amizade, fraternidade. O ambiente foi de festa. Recordo-me da actuação da Banda de Música de Cerveira no Pavilhão Desportivo transformado em galeria de arte e presenciar o olhar (esbugalhado, ou atónito?)  do povo da vila enquanto ia observando as obras nunca vistas por aquelas paragens. Mais incrédulo terá ficado quando foi convidado pelo presidente da Câmara local a participar na festiva cerimónia de inauguração e passear ao lado de alguns artistas. Nos dia seguintes, a festa continuou nas ruas e praças da vila e mais ainda, diante das muralhas do castelo onde, por exemplo, Gracinda Candeias, vinda expressamente de Lisboa, conseguiu através do corpo criar cenas de erotismo e provocar olhares de espanto diante das "perfomances" visualizadas pela noite fora.
Por isso foi com alguma nostalgia que revisitei Cerveira, a vila que permanece vila e onde pela primeira vez, há 33 anos, viajei do Porto para participar na festa de todas as artes. Lá está a escultura oferecida pelo Mestre José Rodrigues, no decorrer da 1ª Bienal ao Município de Cerveira, o casario agora reabilitado de ruelas estreitas, alguns palácios de brazão, os cafés, as casas de venda dos jornais (onde só aos domingos e por encomenda era possível ter acesso aos semanários publicados no dia anterior....) o velho pavilhão desportivo onde a banda de música tocou acordes de contagiante alegria. Tudo parece estar no seu lugar, mas subindo às muralhas do castelo o visitante não deixará de reparar nas múltiplas transformações operadas no desenho da vila tanto do ponto de vista urbanístico, ambiental e paisagístico. Tudo está diferente. As esplanadas estão agora cheias de turistas vindos do outro lado da fronteira (em Agosto apenas se ouve falar galego) e emigrantes em "vacances". O edifício onde acontece a Bienal fica situado a pouca distância do núcleo central da vila, mas naquele "Domingo à Tarde" estava quase vazio e contavam-se pelos dedos o número de visitantes. Só as moscas, aos milhares, causavam alguma perturbação ao silêncio no interior da estrutura sufocante. Logo à entrada algumas esculturas em bronze do Mestre José Rodrigues (cuja 16ª Bienal presta homenagem) e depois, nas salas circundantes, pinturas de Eurico Gonçalves, técnicas mistas de Sam Jinks, desenhos e pinturas de vários autores, perfomances de Pablo Lobato, um brasileiro que exibe os bastidores de uma festa na cidade colonial de Minas Gerais, fotografias da "Cidade Submersa" e do sertão baiano produzidas por Caetano Dias, instalações e "poesias escritas com luz" de Arnaldo Antunes e mais "perfomances" de Maria Trabulo,
De volta à vila e feito um balanço do visto e revisto, fiquei com a ideia que a Bienal perdeu parte da sua matriz,  o esplendor de outros tempos. Já não senti alegria. Eu sei que o mundo mudou e agora outras propostas estéticas dominam o mercado da arte. Já existem mais galeristas, mais "marchands", mais  gente a negociar arte e uma peça de Paula Rego é vendida em Londres por milhares ou milhões de euros. Porém, na minha memória afectiva, a Bienal que fez toda a diferença e causou uma enorme agitação cultural no país teve como animador o pintor Jaime Isidoro, o aguarelista do Porto que escolheu Cerveira para pintar as suas últimas obras de arte.

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