A cinefelia à solta na Figueira da Foz


Há 30 anos atrás, 
Setembro era o mês mais apetecido e as minhas férias vividas intensamente na Figueira da Foz.  A ver filmes, os filmes da minha vida, seguidos de longos debates nas esplanadas dos cafés, nas ruas e salões do Casino da Figueira, dantes chamado Peninsular, onde a burguesia local, os janotas da roleta e as senhoras finas de toiletes vistosas gostavam de passar férias.  Até meados do século passado era "chique" ir  banhos à Figueira e a cidade transformou-se num destino turístico de eleição.  Mais ainda quando aconteceu a Primeira Semana de Cinema da Figueira da Foz (pela mão de José Vieira Marques, animador e crítico de cinema) e a seguir a Câmara decide ajudar financeiramente o  Festival de Cinema da Figueira da Foz.  A cidade rejubila e, em 1972, o  Casino enche-se de outro público, cinéflios e cineclubistas, amantes do cinema vindos de Lisboa, Coimbra e Porto.  O Casino transforma-se na grande meca do cinema internacional  e exibia filmes à margem das grandes majors americanas.  Era uma festa permanente, ano após ano,  partilhada por várias amizades.  Eduardo Prado Coelho, crítico literário e de cinema foi sempre uma presença assídua, uma das vozes mais lúcidas e escutadas. O sem modo de abordar o cinema e conhecimento das obras cinematográficas (quando Duras marcava presença no certame já Eduardo tinha visto os filmes em Paris e lido os "Cahiers")  prendiam a assistência.  Outras vezes, os debates eram estimulados pelo saudoso amigo Henrique Alves Costa, cineclubista, autor de vários livros, estudioso e investigador de Cinema. Por vezes, as discussões prolongavam-se pela madrugada fora e o cinema desaguava junto à praia.  Via-se de tudo um pouco: o bom e o muito bom, o mau e o sofrível numa maratona interminável de filmes, dez dias de cinema desde as 11 da matina até à meia-noite.

Antes de Abril e onde tudo era proibido - até um beijo na via pública -,  a Figueira da Foz  vivia  dias cinzentos e tristes. A "rainha das praias" só era colorida nas aparências. Com a Revolução tudo mudou e o cinema não ficou imune à discussão ideológica, às novas propostas estéticas e cinematográficas. Tudo era novidade num país a experimentar os caminhos da Liberdade.  O cinema de autor dominava atenções, com  Fassbinder  a ganhar o estatuto de estrela. Assumia-se como homossexual e nessa altura, rodava filmes como quem fazia pãesinhos para os amigos.  "Querelle", "As Lágrimas Amargas de Petra von Kant" (1971); "O Casamento  de Maria Braun" (1979) ou "O Desespero de Veronika Voss" (1982) são alguns títulos de público certo e olhar arregalado para Hanna Shygulla, a actriz "fétiche" de Fassbinder.
A minha memória cinéfila leva-me a viajar por outros filmes e lugares do mundo, como "Berlin Alexanderplatz", mais de 15 horas de projecção e ainda hoje,  um dos mais importantes documentários sobre os "Anos de Chumbo", o nazismo e o confronto entre o Leste e o Ocidente.  No baú das recordações,  lembro o último filme de Pasolini rodado antes de ser assassinado ("Salô, ou os 120 dias de Sodoma", inspirado na obra de Sade e cujo script remete-nos para o fascimo italiano de Mussolini), várias obras de Scholondorf  (entre as quais "A Honra Perdida de Catarina Blum") ; Duras ("O Camião" e depois "India Song"),  Manoel de Oliveira, Fonseca e Costa,  Fernando Lopes. E recordo, ainda, esse notável fresco intitulado "Ana", da dupla António Reis e Margarida Cordeiro;  a descoberta do cinema indiano através do olhar sublime de Satyajit Ray e do cinema grego captado pelo olhar de Angeloupoulos ("Os Caçadores", 1977).
A lista de fimes é extensa e pontuada de vários planos e episódios. Um exemplo: em 1978,  ganhei forças e coragem para visualizar uma obra única da cinematografia mundial: "Hitler, um filme da Alemanha", de Syberberg, quase sete horas de projecção divididas em duas partes iguais e com uma hora de intervalo. No final estava cansado, mas feliz.  Muitos anos depois da grande Odisseia das Imagens deito mão a uma grande frase de André Bazin, o mais lúcido crítico dos Cahiers du Cinéma: "O cinema é a satisfação completa do nosso apetite de ilusão".
Trinta depois a Figueira dos meus encantos perdeu glamour e importância como local de veraneio.  O Festival acabou e o projeccionsita do "Cinema Paraíso"  mudou de ofício.  Ficou o registo de centenas  de filmes,  cineastas e amigos, cumplicidades e memórias. E a paixão pelo cinema.
          


Morreu José Vieira Marques.

Partiu como chegou ao mundo do cinema silencioso, afável, disponível para dar a conhecer cinema de todos os continentes e linguagens estéticas. José Vieira Marques, antigo director do Festival Internacional de Cinema da Figueira da Foz, morreu aos 72 anos, em Setúbal. Ontem, foi a enterrar no cemitério de Algeruz, na cidade onde vivia com a irmã.

"Um homem de inspiração humanística, com uma visão plural da vida e da sociedade. Foi padre, mas o cinema foi sempre encarado como uma forma de promoção cultural e de conhecimento das pessoas", destacou António Roma Torres, médico psiquiatra e crítico de cinema durante vários anos no JN.
Gente ligada à arte das imagens e cineclubistas elogiam o papel de José Vieira Marques na dinamização da cultura cinematográfica "O Festival da Figueira foi um marco importante neste país de brandos costumes e o seu director foi um agitador de consciências. Promoveu como poucos o cinema português", lembrou Luís Vilaça, ex-dirigente do Cineclube do Porto. "Ficaram célebres os debates no final das projecções dos filmes. Havia um ambiente de crítica e troca de ideias que se perdeu", sublinhou Alves Sousa, autor de vários filmes de cinema amador.
Para quem perdeu a memória, a Figueira da Foz transformava-se nesses "anos loucos" numa espécie de "meca" da 7.ª Arte atraindo centenas de cinéfilos, críticos e cineastas convidados a mostrar os trabalhos. Graças a Vieira Marques o público português redescobriu cinematografias fundamentaias, apreciou obras de Angelopoulos, Oliveira, Pasolini, Duras, Robert Krammer, Chantal Ackerman, entre centenas de autores nacionais e estrangeiros.
José Vieira Marques faleceu na sequência de complicações cardíacas. Nasceu em Vila Franca de Xira e, apesar da doença a rondar-lhe o corpo, preparava um livro sobre a história do cinema, a paixão da sua vida.


Nota: Texto publicado no JN, em 6/7/2006

Festiva da Figueira, 1976: Entre os amigos sentados nas alcatifas do Casino, encontra-se o actor José Camacho Costa (de cigarro na boca) e de pé, a participar nos debates, o advogado Marcelo Ribeiro, o deputado Strechet Ribeiro, Francisco Bélard, jornalista e crítico literário, João Lopes e crítico de cinema, ambos do Expresso.

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