Esplanada


Já tinha folheado o livro em Maio durante a Feira do Livro e lido alguns poemas. Chegou aos escaparates com a chancela da Assírio & Alvim e cheirava ainda a tinta de papel impreso. Na sua capa dura a etiqueta lembrava ao leitor menos atento que Manuel António Pina tinha conquistado o Prémio Camões 2011, o mais importante galardão atribuído no espaço da lusofonia. Depois de ter namorado o livro várias vezes não resisti e  hoje, na habitual livraria onde volto com frequência  comprei "Poesia, Saudade da Prosa" (uma antologia pessoal). 
Manuel António Pina foi o jornalista (e poeta) mais generoso que conheci ao longo de 30 anos de jornalismo. Conheci-o no pós 25 de Abril de 74, "quando a poesia estava na rua". Depois, a nossa amizade foi-se construíndo à volta  das mesas do café "Piolho," junto ao edifício da actual Reitoria da Universidade do Porto. Naquele tempo falava-se de tudo um pouco: da política caseira, mas também  de Sarte e do Maio 68,  da Revolução Cubana e de Fidel.  E da utopia de um país desenvolvido, onde todos tivessem direito ao "pão, paz, saúde e habitação".  Nessa altura,  o Piolho não era um simples café de lucro fácil e não possuia aquela estrutura exterior (como foi possível a autorização deste atentado ao património arquitectónico e paisagístico numa zona protegida?). Antes, um  centro de convívio,  tertúlia política e intelectual,  conversas e namoros. Aliás, foi no Piolho que Manuel António Pina encontrou a mulher da sua vida e que ainda hoje ajuda a tratar dos 30 gatos (ou mais?)  que o poeta gosta de ter por companhia na sua casa forrada por livros e memórias.
Mais tarde encontrei Manuel António Pina  na redacção do Jornal de Notícias e rejubilei por ter um camarada do mesmo ofício a partilhar comigo a profissão. Quando tinha dúvidas (e muitas foram) socorria-me da sua enorme experiência e conhecimento e pedia-lhe opinião: "Manuel gostas deste título"?  Fui testemunha da sua imensa sabedoria, simplicidade e honradez. Já não existem poetas assim. Ontem como hoje, continua a ser o mais brilhante cronista da actualidade. Por hoje, deixo-vos com um poema intitulado "Esplanada". Já o li vezes sem conta. Sublime.

Esplanada

Naquele tempo falavas muito de perfeição,
da prosa dos versos irregulares
onde cantam os sentimentos irregulares.
Envelhecemos todos, tu, eu e a discussão,

agora lês saramagos & coisas assim
e eu já não fico a ouvir-te como antigamente
olhando as tuas pernas que subiam lentamente
até um sítio escuro dentro de mim.

O café agora é um banco, tu professora de liceu;
Bob Dylan encheu-se de dinheiro, o Che morreu.
Agora as tuas pernas são coisas úteis, andantes,
e não caminhos por andar como dantes.




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