Florença


António Rebordão Navarro (ARN) é um escritor do Porto. Tem uma longa história e aos 78 anos continua a escrever com assinalável frescura e criatividade. Jorge Listopad, numa recente crítica publicada no JL dizia que a sua escrita continua jovem. "António Rebordão Navarro é um escritor que não envelhece", comentou a propósito do seu mais recente livro "As Ruas Presas às Rodas". Porém, na longa bibliografia do autor, sobressaem algumas obras que forçosamente se confundem com a história da cidade de Agustina: O Discurso da Desordem,  Parábola do Passeio Alegre, A Praça de Liège. Bastavam estes três títulos para o romancista da Foz do Douro ter outro reconhecimento público e atenção dos media. Mas a crítica literária em Portugal funciona em circuito-fechado e longe vão os tempos em que jornais como "O Primeiro de Janeiro" tinham páginas literárias, jornalistas e críticos dignos desse nome como João Gaspar Simões.  Porém, o escritor (e poeta) não desiste e a E
ditora Afrontamento acabou de editar "As Ruas Presas às Rodas" - cuja apresentação foi feita na FNAC de Santa Catarina. Há dias, na sua casa única do Passeio Alegre e do Porto contou-me ter escrito "em tempos que já lá vão" um "bonito poema" sobre Florença. Não descansei enquanto não descobri  a publicação na cave pejada de livros, no meio do pó, no meio da estantes a abarrotar de memórias e recordações. Um livro de  José Gomes Ferreira acolá, outro de David Mourão-Ferreira a seguir, vários números da Vértice de boa memória (um deles a prestar homenagem a Redol) e depois, a tal revista fora de moda. E um poema.

Florença

Pode-se ser tudo em Florença,
Sobre Florença ou junto ao rio,
ao seu vago rumor por sob as pontes

Podem as pedras perder o seu destino
e tornarem-se estátuas
e as estátuas ganharem movimento

Pode a noite correr à nossa beira
ou deslizar, suave, na garganta

Pode, apesar do rigor dos edifícios,
da serena posição das torres,
da nem sempre sincera fisionomia dos turistas,
dos rostos fatigados pelos pincéis da tarde esmorecendo,
desvanecer-se a paz em Forença

Pode-se  morrer em Florença,
à hora branca do pequeno almoço,
com algumas migalhas na gravata,
no piano, Rossini.

Pode-se, suavemente, morrer-se em Florença,
nos corredores, nas salas dos Ufizzi,
nos mercados de palha,
à luz do sol no Duomo,
nas mesas passageiras
dos super-ocupados "self-services".
Pode, em Florença, sob a luz de Setembro,
a qualquer hora Vénus renascer,
entre ventos e mantos.


Pode doer em Florença
por diferença, excesso
ou derradeiro brilho
queimando os vidros todos da cidade.

Pode perder-se em Florença,
imaginando que em Florença (à chuva)
talvez fosse possível ser feliz.


António Rebordão Navarro
in revista Villa da Feira, ano IX, número 25, Junho de 2010.

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