"Uma Cinemateca refém de um país"


Eis um texto (Público, Ípsilon,  de autoria de Francisco Valente) que espelha bem a realidade de um país, por mais cenários côr-de-rosa que lhe queiram pintar. A realidade supera a ficção e aqui sem truques de magia, dá-se conta como os políticos olharam para a instituição da Rua Barata Salgueiro e que devia merecer as atenções do Estado.  A Cinemateca que durante anos frequentei de forma regular desde os tempos de Félix Ribeiro até Bénard da Costa, passando por Luís de Pina, não tem dinheiro para legendar filmes e continuar a programação normal.  Esta semana, no correio, em vez do desdobrável a anunciar os filmes a exibir recebi uma folha A4 a comunicar que a Cinemateca "viu-se obrigada a suspender temporariamente uma parte relevante das suas sessões mensais diárias da sala Dr. Félix Ribeiro". 

Por isso, o texto que, com a devida vénia aqui destaco tem toda a actualidade. Uma nota mais para dizer o seguinte: no Porto, a cidade que viu nascer o Cinema tem um edifício construído há vários anos e projectado pelo arquitecto Eduardo Souto Moura, o Nobel da Arquitectura. Podia ser uma casa de cultura, mas está em ruínas,  grafitado e vandalizado. Custou milhões ao erário público, mas os sucessivos governos fingem fazer de conta. Era suposto ser a Casa do Cinema na Invicta e onde uma parte do espólio de Manoel de Oliveira seria doado para fruição pública e cultural.  Já não vai ser.  Rui Rio, o tal autarca que passa a imagem de "rigor e respeitabilidade" não esteve à altura (nem estatura) dos princípios éticos do cineasta e não cumpriu com os acordos firmados. Depois,  como nas comédias sem arte teve o desplante de anunciar aos quatro ventos a oferta da Medalha da Cidade ao cineasta que, obviamente,  foi recusada por Oliveira. Ainda ouvi as habituais aves canoras a criticar a decisão de Oliveira (como eu percebo a falácia:  dependem sempre dos favores de quem está no Poder, seja PSD ou PS...) mas Oliveira não renegou princípios e deixou Rio com a medalha na mão.  Como nota de rodapé deixo mais uma ficção alimentada  pela actual directora da Cinemateca Portuguesa, Maria João Seixas e propagandeada pelos media que a Cinemateca será uma realidade no Porto.  Foi sempre o sonho de Henrique Alves Costa e de um grupo enorme de cinéfilos, mas com este Governo em final de estação e que sempre apostou na encenação não é para levar a sério. 

Uma Cinemateca refém de um país

11.04.2011 - Francisco Valente
 Depois do cancelamento inédito de treze sessões na programação de Março da Cinemateca Portuguesa devido a uma portaria do Ministério das Finanças que impede o transporte e legendagem de películas, as piores suspeitas vieram a confirmar-se no final desse mês. A Cinemateca veio a comunicar que a sua actividade para Abril reduzir-se-ia de cinco para três sessões diárias, implicando o fecho de uma das suas duas salas. Do mesmo modo, é posta em cheque a possibilidade de colaborações mais alargadas com outras associações e festivais que definem o panorama da programação cinematográfica de um país altamente vedado a uma distribuição diversificada nas suas propostas. De uma Cinemateca com duas salas para os seus filmes e para os filmes dos outros ficamos com uma sala na honorável Rua Barata Salgueiro, em Lisboa, debaixo de uma nuvem de incerteza quanto ao futuro.
O relativo silêncio que rodeia este ataque das mais altas instituições do poder executivo à actividade daquela que será das suas mais eficientes instituições revela outro sinal preocupante: a indiferença quanto a um progressivo estado de degradação de uma classe política que sucessivamente entrega o país a um empobrecimento não apenas financeiro mas da parte mais profunda do nosso desenvolvimento - o enriquecimento cultural. Se este Governo não será o único responsável pelo eterno caminho de desperdício em que Portugal repetidamente cai na história da gestão dos seus recursos, essa ruína deve-se, sobretudo, a uma classe política que não vê a cultura como potencial para um desenvolvimento sustentável a longo prazo dos seus cidadãos mas apenas como soma de conteúdos destinada a ser cortada para um hipotético enriquecimento financeiro a curto-prazo exigido como resposta à incompetente gestão da nossa tesouraria. Assim, pior que o espanto de se achar que o impedimento da exibição de filmes pela Cinemateca poderá salvar Portugal da bancarrota será a incapacidade de compreender o reverso desta medida: a censura de um serviço público exclusivamente suportado pela Cinemateca (visto que a televisão pública não o cumpre) sobre uma parte essencial da compreensão e uso das imagens que alimentam e produzem o nosso pensamento.
Mas para uma classe política que recusa assentar o nosso desenvolvimento numa estratégia de crescimento a longo prazo não se poderá esperar outro sinal a não ser o desapreço por locais de crescimento e de aprendizagem tão essenciais como a Cinemateca. Do mesmo modo, uma passagem pela presente edição do festival Panorama bastaria para compreender, entre os documentários das agitações pós-revolucionárias do nosso país, alguns dos eternos problemas e decisões que assolam a nossa democracia e que mostram como o seu modelo de desenvolvimento, assente no favorecimento da ignorância e da falta de aprendizagem cultural de governantes e governados, mantém-se como a base dos problemas que assolam o regime e corrompem o progresso da nossa população.
Fosse uma estratégia para o país feita a partir do enriquecimento de ideias e culturas como as que nos são apresentadas pela Cinemateca e pelo cinema - arte da compreensão dos progressos e falhanços da nossa história -, e estaríamos, seguramente, melhor entregues.

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