Memórias da Revolução à mesa



Os antigos militantes do MES-Movimento da Esquerda Socialista reunem-se hoje num almoço de confraternização. Será na margem Sul do Tejo num restaurante do Inatel. É uma bonita iniciativa. Sempre foi à mesa que os grandes assuntos deste país foram tratados. No repasto já não terão lugar conspirações, contagem de espingardas, muito menos saber quem está a favor ou contra a moção ou recomendação partidária. Antes, longas conversas, abraços com muitos cabelos brancos à mistura, nostalgias, encontros de amigos, homens e mulheres que navegaram no mesmo movimento (e depois em outras águas partidárias) gente que, num determinado contexto histórico, político e cultural abraçou grandes causas e andou de emblema do MES ao peito. Não será tempo para recriminações, acusações, antes de convivialidade e partilha. Talvez (quem sabe?) algum militante faça um rebate de consciência e pergunte para com os seus botões: "Foi para isto [leia-se: despedimentos, cortes nas pensões e fome no país) que andei no MES e os militares fizeram o 25 de Abril"?
Há 37 anos tinha acabado de chegar da guera colonial, da Guiné-Bissau, onde estive cerca de 10 meses. Fui furriel miliciano (imaginem: atirador de Infantaria, com especialidade em Minas e Armadilhas...) e no final desta minha experiência num cenário de guerra tive montanhas de sorte já que, nos 10 meses que estive em Cancolim, na zona Leste, fronteira com o Senegal, nunca dei um tiro e a minha G3 manteve-se intacta e enferrujada. Recordo-me do  navio Niassa ter atracado em Alcântara-Mar, em Lisboa, numa tarde luminosa do dia 18 de Setembro de 1974 e dez dias depois, Spínola e seus correlegionários tentavam (sem êxito) dar mais um golpada contra a Democracia e a Liberdade conquistada no 25 de Abril. Ainda meio atordoado com o ritmo dos acontecimentos (todos os dias aconteciam manifestações pelas ruas do país) e com consciência política forjada no combate ao Fascismo aderi ao MES. Foram tempos de grande entusiasmo, rebeldia e partilha. Únicos e irrepetíveis porque a Revolução sonhada pelos povo e admiravelmente pintada nos bonitos posters de Maria Helena Vieira da Silva deram lugar a conquistas, ao exercício do voto  e à cidadania.
Depois, veio o desencanto, a desilusão e amargura. Nesses tempos ia a Lisboa como quem vai à Praça da Liberdade, no Porto. Foram viagens sempre feitas com entusiasmo e prazer. Até a distância entre as duas cidades  parecia mais curta. Lembro-me da generosidade sempre demonstrada pelo Arquitecto Nuno Teotónio Pereira  que, amavelmente, fazia o favor de acolher-me em sua casa e com tal gesto de amizade tornava  mais fácil a minha participação nas muitas reuniões agendadas pela Comissão Política do MES, cuja sede funcionou num cobiçado prédio da Avenida  de D. Carlos I, bem perto da  Assembleia da República. Foram tempos empolgantes, cheios de beleza, mágicos. Os encontros, debates e conspirações sucediam-se em catadupa e as manifestações constantes. Fiz pichagens, colei cartazes e participei em tudo quanto foi possível participar. Não renego nada do que fiz. Só lamento que muitos do ex-MES  - sobretudo aqueles que tiveram responsabilidades políticas em diferentes governos do PS - não tivessem tido a ousadia de sonhar mais alto, participado com mais audácia, transparência na gestão da coisa pública e contribuído para que este país tivesse futuro e esperança. Muitos deles foram ministros, um deles até foi eleito presidente da República, outros ocuparam lugares de confiança no aparelho do Estado. E por lá ficaram: uma vezes no Parlamento, depois nas  empresas públicas do Estado, autarquias e empresas municipais. Hoje,  fazem parte do "Clube de Acomodados" e muitos dos ex-MES viram a política como tranpolim para o lugar principescamente pago e cheio de mordomias.
O MES foi uma das minhas melhores experências de vida, pois além da participação política e cívica conheci gente generosa e fantástica. Parabéns pelo encontro de confraternização e faço votos que este momento seja prolongado no tempo. A vida também é feita de memórias.

Comentários

  1. Manuel Vitorino,eu diria o mesmo, só que não diria tão bem!
    A minha ligação ao MES foi mais discreta, esteve circinscrita às reuniões que então fazíamos na sede do Movimento,na Rua Alexandre Herculano, no Porto. Aí partilhavamos sonhos, projectos e o encantamento de uma sociedade mais justa e igualitária. Em 1974 era eu uma jovem estudante do curso de Serviço Social. Vivia ancorada na doce convicção de que no futuro todos os Assistentes Sociais iriam ser dispensáveis, porque a pobreza acabaria por ser erradicada. irradicada.Como nos enganamos!
    De qualquer forma um abraço para quem teve a iniciativa deste encontro, porque a nostalgia do sonho há-de prevalecer no coração de muita gente.
    Cândida Vasrela

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  2. brilhante, fiquei sem palavras BRAVO!

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