O mar da Ligúria abençoa Cinque Terre



“Quando eu morrer voltarei para buscar/
Os instantes que não vivi junto do mar”
(In Inscrição, Sophia de Melo Breyner Andresen)


Foi diante do golfo de Tigullio, em Sestri Levante, a sul de Génova, com falésias debruadas sobre o mar, entre a Baía do Silêncio e a Baía das Fábulas que a emoção tomou conta da geografia. Por instantes, os passeantes fizeram uma longa pausa para admirar o pôr-do-sol no Mediterrâneo e extasiados pela paisagem devem ter pensado: “Como foi possível ter demorado tantos anos para chegar até aqui”. Magia? Sim, foi um momento único ter percorrido este milenar lugar de genoveses, território inspirador de “A Pequena Sereia”, de Hans Christian Andersen, ter visto o casario desenhado numa nesga de terra erguida para o céu, observado o modo como o homem desde a Idade Média até hoje soube inovar, transformar e manter com grande dignidade um rendilhado de caminhos estreitos, colinas, paisagens, prédios esguios sobriamente recuperados e com gente dentro. Diante da falésia, desenha-se uma linha divisória entre a Riviera Italiana/Riviera Francesa conhecida pela famosa (e por vezes excêntrica) estância balnear de Cannes e Saint-Tropez. “Não sei se estive no paraíso, mas andei lá próximo”, resumiu um “passeante apaixonado” da Ligúria.
Ainda embalados pela descoberta de Sestri Levante,  outras cores  surgem em redor deste mosaico denominado Riviera di Levante,  cujo Golfo de Tigullio (ou Golfo de Portofino) permanece como estância de veraneio da aristocracia endinheirada, com mansões a perder de vista por entre a vegetação da colina, porto de abrigo de marinheiros, turistas, amantes da Natureza. Portofino não é só e apenas uma terra de pescadores, antes um presépio em ponto pequeno com o mar ao pé da porta, barcos de recreio e de pesca, iates de gente milionária ancorados na baía.      





"Art Nouveau" em Rapallo

A manhã primaveril começou bem cedo, em Rapallo, pequena cidade banhada pela costa da Ligúria, com edifícios de arquitectura clássica e “art nouveau”, fachadas pintadas em tons pastel, pequenas lojas de comércio, com a igreja de San Stefano a dominar atenções no coração do centro histórico, mais o Gaffoglio Museum exibindo colecções de ouro, prata e porcelana. Nesta cidadezinha pontuada por referências literárias [foi aqui que Nietzsche escreveu parte da sua famosa obra “Assim Falou Zaratrusta”] a urbe de Rapallo testemunha não só respeito pelo legado patrimonial, como demonstra um estilo de vida espartano típico do genovês, sem exibicionismos, luxos, ostentação. “Por tradição, o genovês é um homem muito poupado. Dá muito valor ao dinheiro”, avisa Gonçalo Cadilhe, viajante e cicerone desta epopeia com destino às Cinque Terre, um conjunto de cinco aldeias classificadas pela UNESCO, como Património Mundial da Humanidade.
Segue-se a aldeia de Riomaggiore, cujo casario construído a pique,  entre socalcos de vinhos afamados pelos suas castas e aromas constitui um regalo para os sentidos. Bastou um breve olhar à pequena urbe cuidadosamente limpa e aprumada para perceber que, também aqui, o passado tem futuro. Junto ao mar, existem negócios ligados ao comércio tradicional e à pesca, pequenos bares e cafés, alguns turistas em busca do “souvenir” desejado. Como a descoberta destes lugares, com o mar de um lado e os montes do outro têm mais encanto andando a pé, o viajante nem dá conta que entrou na Via dell´Amore em direcção a Manarola.  O olhar não deixa dúvidas:  as paredes do pequeno túnel de acesso à povoação estão cheias de desenhos de corações apaixonados, pinturas naif,  centenas de cadeados enferrujados a prometer juras de amor. “Faço votos que tenha sido moda passageira”, sorri Gonçalo Cadilhe, autor de vários livros de viagens à volta do mundo, contador de histórias. Depois de mais alguns quilómetros a pé, surgem no horizonte outras aldeias património das Cinque Terre:  Corniglia e depois Vernazza (fortemente fustigada pelo aluvião ocorrido no Inverno do ano passado) e não muito distante, Monterroso al Mare.



Chiavari: uma vila pacata
Nesta viagem ao reino da Ligúria tempo, ainda, para espreitar Chiavari, 50 mil habitantes, quarteirões desenhados ao longo dos séculos ao sabor dos gostos e da arquitectura,  casas suportadas por pilares de ardósia diferentes uns dos outros, inúmeras lojas de comércio tradicional debaixo das arcadas, muita gente às compras. “É uma vila rica e com muito artesanato. Desde a Idade Média existe essa tradição”, lembrou Gonçalo Cadilhe que, entre outros apontamentos, referiu o facto de Chiavari possuir uma indústria “muito forte” ligada à extracção da pedra e ardósia. “A vila é muito pacata e segura. Por isso, os habitantes preferem continuar a viver aqui e todos os dias efectuar a viagem para o trabalho em Génova.  No passado, muita gente emigrou para a Argentina (Buenos Aires) e o Perú”, recordou enquanto aponta ao privilegiado grupo de portugueses a bonita catedral de Chiavari, símbolo do poder eclesiástico e a milenar Via Aurélia, uma das maiores estradas romanas a serpentear o golfo da Ligúria.
No final desta viagem não resisto em fazer um flash-back sobre Cinque Terre, reviver os minutos vividos junto ao adro da igreja de Santa Margherita, sobre a Baía do Silêncio, em Sestri Levante, antes da caminhada de oito quilómetros até PortoFino. A abençoada pausa foi um bálsamo dos deuses. Começou a entardecer e a escadaria da igreja transformou-se num mirante de observação com o sol a beijar o mar da Ligúria. O ambiente voltou a ser de fábula e irreal. Pela noite dentro, espera-nos várias especiarias da cozinha tradicional da região, deliciosos pimentos e beringelas grelhadas com alcaparras, mexilhões recheados acompanhados de um excelente tinto Chiaramonte 2010/Nero d`Avola. O “último segredo de Itália” foi desvendado.

Comentários

  1. Gostei muito de vivenciar de novo momentos emocionalmente inesquecíveis através do teu texto, como se de uma sucessão de pinceladas se tratasse a regravar na memória o que não quero esquecer... Obrigada e espero mais...

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  2. Não estive, mas foi como se tivesse lá estado! Parabéns ao cronista!!!

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  3. Que beleza de crónica! Excelentemente poética e de um visualismo tocante! Estive lá, dentro do texto! Temos poeta e cronista de qualidade.

    Um abraço,
    José

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  4. Que beleza de crónica! Excelente e poética! Temos poeta e cronista de qualidade. Graças ao visualismo que o texto oferece, estive lá, no coração da crónica.

    Um abraço,

    José

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  5. Foi um prazer ter viajado contigo e com o fantástico grupo por terras da Ligúria. É com muito gosto que leio esta tua excelente crónica que descreve na perfeição tudo o que olhámos e traduz alguns dos grandes momentos vividos. Muito bom o pormenor do nome do vinho do jantar em Sestri.
    Abraço!

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  6. depois de ler fico com pena de não ter pertencido a esse grupo, mas não perco tempo e vou "já" até lá.

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