“La Dolce Vita”, de Fellini: a sedução do génio


Diz-se com frequência que, "La Dolce Vita" é um retrato da decadência moral e intelectual de uma sociedade em perda de valores morais, políticos, culturais, religiosos. Acrescento mais um pecado (ou virtude?)  a este filme actual, embora produzido e realizado há mais de 50 anos: Fellini com o seu olhar satírico filma uma certa burguesia decadente, mas lança-nos outros sinais inquietantes, a incomunicabilidade das sociedades ditas modernas, o modo como consegue filmar a coreografia dos famosos,  os seus tiques e hábitos, a pose e modo de estar de uma certa "society" aristocrática.
Um dos  primeiros planos é revelador deste estado de alma quando Marcello Mastroianni viaja de helicóptero com a estátua de Cristo pelos céus de Roma, a Cidade Eterna e a caminho do Vaticano, a câmara filma uma casa com piscina  estabelecendo-se um diálogo surreal: enquanto as mulheres em biquíni perguntam para onde vai a estátua, Marcello, o galã salteador de corações frágeis pede o número do telefone. Mastroianni não ouve, mas Fellini deixa-nos um alerta em jeito de metáfora para a sociedade da comunicação cheia de ruídos, sons estranhos. Em síntese, para a incomunicabilidade. E este plano aparentemente sem sentido, conduz-nos para outros territórios como o direito à imagem e privacidade, ao equilíbrio entre informar e ser informado. Mas, aqui não existem regras. Vale tudo e ontem como hoje, os “paparazzi” com uma rudimentar rede de recursos, onde até a máquinas de tirar fotos nos fazem sorrir e é hoje uma peça de museu, lá vão fazendo o negócio sórdido que, eu por pudor e ética, recuso-me a empregar a palavra Jornalismo pois, Jornalismo é um conceito demasiado nobre para figurar nesta sequência fílmica. Mas, lá estão os "paparazzi" do costume fotografando vedetas que gostam de aparecer nas revistas cor-de-rosa e que, lá como cá, chegam a pagar às agências em dinheiro vivo e outras vezes sabe-se lá como para aparecer nas revistas cor-de-rosa que uma certa burguesia consome em doses industriais. Como não podia deixar de ser surgem conflitos de interesses e no filme torna-se evidente esse mal-estar na cena do casino quando Mastroianni (também ele um paparazzo das notícias) dança com a actriz Anita Ekeberg (Sylvia Rank) a vedeta de Hollyoowd e por quem Marcello, uma vez mais seduz provocando ciúmes e muitas invejas...
Onde fica a fronteira entre o público e o privado é outra interrogação que Fellini procura suscitar ao espectador mais atento.

 Exibicionismos e ostentação

"La Dolce Vita" é também um filme de exibicionismos e de gente que gosta de ostentação que baloiça entre a riqueza e a volúpia do amor e onde Felinni sem contemplações ou cedências filma personagens de opereta,  situações bizarras, como a casa inundada da prostituta arruinada, o transporte de uma mulher para o hospital vítima de um medicamento mortal. Mas é também um filme sobre o amor no sentido mais nobre do termo, romântico “ma non tropo”. E que melhor exemplo podia citar este sentimento de paixão quando na famosa Fonti di Trevi a bela Anita Ekberg e que Fellini, numa célebre entrevista afirmou: “Meu Deus, fazei com que eu nunca a encontre” (1) resolveu tomar banho naquelas águas abençoadas seguida de perto por Mastroianni. Aqui, estamos no reino da fantasia, sensualidade e luxúria.
Gostaria, ainda, nesta abordagem necessariamente breve e lacunar, aflorar outro elemento marcante na estrutura narrativa deste filme singular e um dos mais belos da História do Cinema. Refiro-me às sequências onde aparecem as supostas aparições à Virgem – pelos vistos este fenómeno religioso, misto de crendice popular e santa ignorância ultrapassou fronteiras – e onde uma das protagonistas refere uma frase de contornos messiânicos: “Quem procura Deus encontra-O quando quiser”. Uma vez mais, a história repete-se e este filme faz-nos relembrar outras imagens já vistas entre nós, a chegada de uma multidão de devotos, a montagem de diversas câmaras de televisão, a procura do melhor ângulo de filmagem para exibir o pretenso milagre e da aparição de Nossa Senhora a duas crianças. Em síntese, o espectador é convocado para participar na montagem do circo mediático dos tempos actuais e assistir em directo e ao vivo aos relatos sempre pitorescos do repórter que transmite o homicídio de Steiner (Alain Cuny) confidente e amigo de Marcello acusado de assassínio dos filhos.
Uma vez mais, Fellini não deixa escapar nada e mostra a outra face dos  media, na forma como conseguem ampliar e manipular o drama transformando o sucedido num acontecimento recheado de sensacionalismo e histeria. Uma vez mais, este filme mantém uma actualidade inquietante. Como é sabido, todos nós já vimos estas cenas e imagens num qualquer telejornal televisivo, num canal público ou privado.

 
"Que pensa das actrizes italianas?"
 

Volto ao tema da comunicação para lembrar alguns episódios que no filme nos fazem sorrir (ou inquietar, conforme a perspectiva) como a cena surreal da propaganda de uma enorme pizza napolitana junto ao avião que transportou Anita Ekberg em plena pista de aterragem do aeroporto e onde uma locutora de televisão faz perguntas tontas tais como: “Que pensa das actrizes italianas? E da cozinha”? ou das cenas labirínticas no interior da escadaria do Vaticano, os diálogos assombrosos entre Mastroianni e Anita Ekberg (quando esclarece que "a Torre de Giotto não fica em Roma, mas sim em Firenze") e depois, uma confissão mil vezes repetida: “Estou farta. Os Homens são todos iguais”.
Existem mais cenas deliciosas como o gato nas mãos de Anita, por vezes angélica e doce, outras vezes colérica e “prima dona”. Mas "La Dolce Vita" ficará, por certo, como um filme melancólico e burlesco, apelativo da memória e dos sentimentos, filmado a preto-e-branco (tão ao gosto do expressionismo alemão) com uma linguagem muito própria e singular. Este filme é também pontuado por excelentes actrizes: Anita Ekberg, Anouk Aimée (Maddalena); Yvone Furneau (Emma) e claro está um grande actor, Marcello Mastroianni. 

Humor, sátira e cumplicidades

Fellini manteve sempre um humor muito refinado, criativo e sempre fiel aos seus amigos. Um deles, foi o compositor Nino Rota que hoje fazemos uma evocação e homenagem. Dizia Fellini sobre o autor de memoráveis bandas sonoras dos seus filmes (2): “A minha preferência por Nino Rota como compositor deriva do facto de ele parecer muito próximo dos meus temas e das minhas histórias e por trabalharmos em conjunto. Na minha opinião, Rota é o mais humilde dos compositores que trabalharam no cinema porque compõem uma música extremamente funcional”.
Fellini amou a Cineccità, onde passou os “momentos mais felizes” da sua vida profissional e deixou-nos filmes inesquecíveis: “La Strada”; “Le Notti di Cabiria”; "Giulietta degli Spiriti”; “Satyricon”; “Roma”, "Amacord" e “La Città delle donne”.  Antes de partir, ainda fez mais uma mão cheia de bons filmes como “E la Nave Va”, e“La voce della luna”, para só citar alguns títulos que marcam o meu imaginário cinéfilo.
Fellini masceu em Rimini em 1920 e morreu em Roma, em 1993. Ninguém fica indiferente ao seu legado histórico e cinematográfico. Deixou uma obra imensa, fulgurante e criativa. Viveu intensamente o cinema e a vida.
Uma nota pessoal: quis o destino que tivesse admirado uma parte significativa da sua filmografia nas instalações do velhinho Cineclube do Porto, à Rua do Rosário, aqui bem perto deste bonito palacete da Rua da Restauração, no Porto. Comecei a ver cinema italiano através da objectiva de Fellini e só depois, veio Antonioni, Visconti, De Sica, Bertolluci, Pasolini. Sempre admirei a sua arte das imagens e modo fazia cinema. Navegou entre a “nouvelle vague” de Godard, Truffaut, Rivette  Chabrol e o neo-realismo italiano cujos expoentes máximos no pós-guerra foram Rosselini (que, em 1944, filmou o admirável e belíssimo "Roma, Cidade Aberta”) Vittorio de Sicca, Visconti. Mas a sua arte ultrapassou todas as fronteiras, códigos estéticos e géneros. Foi único, assombroso, polémico. Mas sempre genial.
Manuel Vitorino
Jornalista
 
10 de Novembro de 2012, Consulado de Itália no Porto
 
1-    In “Fellini por Fellini”, publicações Dom Quixote, Lisboa, 1985.
 
2- “Fellini conta Fellini”, Bertrand, tradução de Maria Dulce
e Salvato Teles de Meneses, 1982. 
 
  

Comentários