“Sou feliz mesmo na prisão”


Imagens do Real Imaginado/Ciclo de Fotografia e Cinema Documental exibiu “3 horas para Amar”, da jornalista Patrícia Nogueira.

Por: Manuel Vitorino
Jornalista
 

Take 1 - Antes de mais um aviso à navegação: este filme/documentário exibido ontem na Biblioteca Municipal Almeida Garrett, no decorrer da 9ª edição das Imagens do Real Imaginado,  não é um filme qualquer. Tem um título apelativo, mas não foi feito para piscar o olho a corações frágeis ou “piegas” .  Antes, revela o mundo sentimental e onírico de quatro mulheres acusadas de vários crimes e, por isso, em cumprimento de pena de prisão (Estabelecimento Prisional de Santa Cruz do Bispo, Matosinhos) com regras próprias, segurança apertada, cumprimento de horários, rigorosamente vigiadas dia e noite. A sinopse do filme desvenda um pouco desta história vivida e sentida entre corredores, portões de ferro, celas, guardas prisionais: “Uma vez por mês, durante 3 horas, as reclusas abrangidas pelo regime de Visitas Íntimas conseguem “evadir-se” da prisão e sentir-se de novo mulheres”. Daí, Patrícia Nogueira, autora deste documentário (excelente, diga-se desde já) ter optado por um modelo de “cinema-verdade” tão ao gosto de alguns cineastas de renome internacional, como  António Campos e num outro registo, Jean Rouch, autor de notáveis filmes de carácter etnológico em diferentes países africanos.

 

Take 2-  O primeiro plano de “3 Horas para Amar” conduz-nos a este território estranho e por vezes misterioso. Por lá circula uma câmara sensível e atenta, filmando várias sequências, uma vezes pormenores de grande simbolismo  como a passagem do avião por cima da prisão em direcção ao Aeroporto do Porto  (talvez o passaporte para a Liberdade sonhada e sempre adiada…) outras vezes, uma reclusa serve-se do resto do pão da refeição e alimenta as pombas que sobrevoam o terraço do estabelecimento prisional, uma nesga do território onde pode olhar o céu, as nuvens, sentir o sol. Mas, onde o filme ganha mais força e a narrativa consegue agarrar o espectador de princípio ao fim tem a ver com as vivências de quatro mulheres, diálogos, frases entrecortadas por silêncios, retratos psicológicos e olhares diferentes deste mundo à parte (e por vezes desconhecido) da sociedade portuguesa.
“Ninguém está aqui por nada”, confessa uma das protagonistas do filme a cumprir cinco anos e meio de prisão. “A saudade é muito complicada. Temos de aprender a viver com a saudade. Não é fácil. Tenho saudade de tudo, de tudo. Aprendi a viver um dia de cada vez”, revela com indisfarçável optimismo enquanto dispara uma revelação surpreendente: “Eu tinha de vir para a cadeia. Eu não tinha o direito de andar a fazer o que fazia”. Como não perdeu a capacidade de sonhar ainda sorri: “O mundo caiu-me em cima”. Depois, a reclusa 142 desvenda outros pormenores da sua vida íntima, a paixão pelo Tito e depois, a descida aos infernos com as drogas, os sucessivos roubos (3 botijas de gás, um cheque…) os negócios do tráfico. “Foi uma coisa muito marada”.



 Take 3- O dia das reclusas começa bem cedo, às primeiras horas da manhã e termina logo após o jantar servido às 18 horas. Depois, entram na cela até ao dia seguinte. Umas sentem mais a prisão, as grades, o isolamento, a família. Outras, ocupam-se o mais possível. Nem que seja a fazer coberturas de camas para cães. “Tento estar ocupada o mais possível. Assim, não penso muito. À noite, quando regresso à cela é muito complicado. São muitas horas a pensar, a olhar para as paredes. Estou afastada da minha filha há dois anos. Custa muito”, diz outra mulher jovem e mãe.
Existem sons, passos pelos corredores, diálogos curtos, por vezes sorrisos contidos, reclusas acompanhadas das guardas prisionais. “O mais perturbante é o fecho das celas da prisão”, conta outra mulher de voz firme e olhar penetrante. A emoção tomou conta do lugar, mas “amanhã é outro dia” e só pensa no dia da saída (nem que seja “precária”) e em reconquistar a Liberdade.

 

Take 4 – Além das celas e corredores, as mulheres têm outros espaços onde a socialização acontece e, por vezes, conseguem construir amizades para a vida. O telefone é o aparelho mais cobiçado, o único meio de comunicação para o exterior, ouvir a voz dos familiares mais próximos. Para que os elos já frágeis pela condição humana não sejam quebrados. Tempo, então, para confidências, desabafos, inquietações, perguntas e angústias. Porém, o momento mais desejado surge quando a reclusa é informada da  autorização para a Visita Íntima, uma medida tomada pela DGSP em apenas sete dos 50 estabelecimentos prisionais do país. Uma mistura de sentimentos acontece: tensão, ansiedade, desejo. “Hoje  foi o dia mais feliz desde que estou presa”, recordou no filme uma reclusa a cumprir pena há seis anos em Santa Cruz do Bispo. “O calor humano é o mais importante e também poder comunicar à vontade sem ninguém”. O filme aproxima-se do fim e sem constrangimentos a mulher contou a falta de carinho e afecto que tem tem sentido desde que entrou na prisão. “Há seis anos que não tinha uma relação sexual com o meu marido”. E sorriu de contentamento, felicidade estampada no rosto.
Como dentro das prisões também existem mistérios e, por vezes, paixões, “3 horas para Amar”, ajuda-nos a desvendar os dramas de quatro mulheres, suas histórias e percursos de vida, conflitos interiores, contradições. “Quando entrei para aqui foi um choque. Depois, mentalizei-me. O meu mundo é este. Estou presa há três anos. O tempo passa depressa”. Mas será que é assim? No final da projecção do notável documentário de Patrícia Nogueira, uma  frase ficou, por certo, na mente de muitos espectadores quando uma reclusa de sorriso doce diz: “Sou feliz mesmo na prisão”.

 
The End- Como sublinhou a autora de “3 Horas para Amar”, o projecto só possível de concretizar, num primeiro plano, após terem sido vencidas as resistências da DGSP. Depois, tudo foi diferente e dentro da prisão, a autora e equipa de filmagem contou com a colaboração de gente empenhada e experiência feita no terreno concreto das prisões. Por isso, foi capaz de compreender o alcance do filme e ter percebido há muitos anos que, por detrás de uma reclusa existe uma mulher com sentimentos e capaz de pular a cerca para uma vida diferente. Nem sempre os burocratas de serviço são capazes de compreender estas coisas e por isso, quando têm Poder (ou imaginam ter Poder delegado pelos políticos de ocasião) conseguem muitas vezes complicar e boicotar trabalhos de grande importância pedagógica e cultural. Nestes casos só resta esperar, resistir e vencer. Parabéns à autora deste notável filme.
 

 

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