Visconti: O Mestre do Barroco


Uma mão cheia de filmes de Luchino Visconti iluminam o nosso olhar, obras-primas que que resistem ao tempo e às modas. Recordo particularmente “Ossessione”, rodado em 1943, o tempo da ligação de Visconti ao Partido Comunista Italiano e logo a seguir, “La Terra Trema”, um dos grandes filmes da corrente neo-realista do pós-guerra e que contagiou outros cineastas como Fellini, Vittorio de Sicca (quem não se lembra do emblemático “Ladrões de Bicicletas”?) e depois em 1951, rodou Bellissima, com a actriz italiana Anna Magnanni, deslumbrante, sedutora, uma carreira fulgurante pelo mundo do cinema. Logo a seguir, em 1954,  Visconti filmou “Senso” e três anos depois, “La Notti Bianche”, com Marcello Mastroianni, Maria Schell e Jean Marais, onde recebeu o Leão de Ouro do Festival de Veneza. Podia dizer-se que foi um ano de glória, mas a genialidade do cineasta voltou a surpreender-nos em cada filme. E que filmes Visconti nos deixou no vasto e profícuo legado artístico e cinematográfico. Lembro, “Rocco e Seus Irmãos”, em 1960 (com Alain Delon e Annie Girardot) e logo a seguir, em 1963, “O Leopardo”, três horas arrebatadoras de cinema magistral, extraído do romance homónimo de Guiseppe Tomasi di Lampedusa, uma obra histórica e que faz história dos conturbados anos de 1860, com a Itália dividida em vários reinos, famílias, interesses económicos, políticos e culturais. E as primeiras sequências do filme dão-nos conta deste ambiente carregado e sombrio: as orações na igreja enquanto uma voz revela ter sido encontrado um soldado morto no jardim, as notícias no jornal do trágico acontecimento “Deus salve o nosso amado Rei”, implora-se enquanto paira no ar a chegada e desembarque das tropas de Giuseppe Garibaldi na Sicília: “É a Revolução”, diz o temeroso e patusco padre Pirrone, cujos diálogos marcados por cenas de terror dão conta de “ruas cheias de soldados e assassinos”. Anunciam-se maus tempos. “Podia ser um país tão bonito senão houvesse tantos jesuítas”, lembra-se num diálogo do filme. Porém, a luta não é só religiosa, antes política, com os rebeldes a querer terminar com a aristocracia endinheirada e poderosa, com o príncipe Salinas a fazer tudo o que está ao seu alcance para perpetuar a sua corte, poder e influência. Assim, se explica o seu refúgio em Donnafugata, a cidade familiar do príncipe, numa extraordinária interpretação de Burt Lancaster e a adesão à causa do seu sobrinho Tancredi (com Alain Delon ainda jovem e no começo de uma fulgurante carreira).

Num filme recheado de pormenores e episódios, não posso deixar de chamar a atenção para uma frase lapidar que atravessa todo o filme e cuja carga simbólica continua a manter plena actualidade nos dias de hoje: “É preciso que as coisas mudem de lugar para que permanecem onde estão". Em Portugal, esta frase é profética, já que, ao longo dos anos, os sucessivos governos com mentiras meias-verdades foram
criando a ilusão que as coisas estavam a mexer, mas tudo não passou de uma farsa trágica com fim anunciado.
Mas este filme é também um filme de paixões, amores e desamores, traições, ciúmes, com a bela Claudia Cardinale a provocar invejas e seduções de vário tipo. E votos fervorosos de uma Itália unida. E aqui é curioso verificar a cena extraordinária das eleições na comunidade de Donnafugata, onde o povo da Sicília foi chamado às urnas (para eleger o seu rei) e depois da contagem dos votos (512 votos deram o “sim” ao soberano) surge um plano fílmico onde as velas vão sendo lentamente apagadas deixando na penumbra o resultado final da votação.
Num notável livro sobre a vida e obra de Visconti, publicado em 2001, por ocasião do Porto Capital Europeia da Cultura, o ensaísta Lino Micciché sustenta, a propósito deste filme como sendo “uma obra de transicção, de uma transição grandiosa e por vezes comovida. Transição da primeira fase de Visconti (na qual o mundo objectivo consegue prevalecer em grande parte, embora não totalmente, sobre a veia subjectiva, sobretudo a partir de Ossessione, para a derrota e para a destruição, para o destino e para a morte”. E prossegue: “Na segunda fase de Visconti, onde os grandes temas da decadência e do crepúsculo de um mundo que tende a comover-se com a sua própria agonia prevalecem sobre as necessidades da História, da ideologia e da política. Transição de época, também de sociedade italiana dos anos de fascismo e da guerra, com a sua abundância de  horrores e de dólares, e do imediato do pós-guerra, carregado de ilusões e esperanças, para a sociedade pacificada e desiludida dos anos do milagre económico”, do bem-estar generalizado e da modorra política”.
Mas, Visconti, “O último esteta”, como muito bem classificou João Bénard da Costa, antigo director da  Cinemateca Portuguesa, continuou a surpreender-nos. Recordo com emoção um dos mais belos filmes de toda a história do Cinema – “Morte em Veneza” - baseado na obra de Thomas Mann com o grande actor Dirk Bogard no principal papel e que muitos anos depois pude rever tendo como décor a belíssima e mágica cidade de Veneza mais a extraordinária música de Malher por companhia. No final da longa carreira cinematográfica, Visconti ainda realizou mais dois filmes: “Violência e Paixão” e “O Inocente”. Mas, hoje é tempo de revisitar um filme grandioso, intemporal que, em 1963, foi premiado com a Palma de Ouro no Festival de Cannes e apreciar uma das grandes obras da história da Sétima Arte, sem antes citar uma frase que traduz muito do universo de Visconti. Quando um crítico de cinema inglês lhe perguntou qual das três artes – Cinema, Teatro ou Ópera – ele preferia o cineasta respondeu: “Aquela em que estou a trabalhar nessa ocasião. Quando enceno ópera sonho com cinema. Quando estou a trabalhar no cinema sonho com ópera e quando estou a fazer uma peça sonho com música”. Fiquemos, então, pela magnífica banda sonora e a música de Nino Rota, as interpretações de Burt Lancaster e Claudia Cardinali, uma história elaborada com grande rigor estético e magistralmente dirigida por Luchino Visconti.

17 de Novembro de 2012

 

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