O adeus ao pintor João Martins


Acabei há minutos de saber da morte do meu amigo João Martins, 75 anos, pintor, aguarelista, sempre de sorriso aberto, fraternal e disponível para os outros. Uma condição superior para a cidadania. Com tais atributos sempre senti maior admiração, respeito, ternura. Foi assim desde o primeiro instante. Tive prazer de conhecer o João, no Porto, primeiros anos da década de 70, na abertura da galeria Abel Salazar, situada na Rua do Barão de Forester, ambiente asfixiante em termos políticos, culturais, sociais. Tudo era subversivo. Como eu adorei este espaço,  uma enorme sala luminosa cheia de quadros dependurados nas paredes aberta por amor à Arte. Talvez por isso e muito mais foi diferente ao meu olhar. Além do nome escolhido pretender simbolicamente homenagear um dos grandes vultos da Ciência e da Medicina, o local foi tertúlia, palco de encontros, exposições, abertura aos jovens pintores acabados de sair da ESBAP e com isso, permitiu num tempo sem mecenas, divulgar junto da cidade as suas experiências estéticas e tendências artísticas. Como seria de prever a galeria teve vida efémera. Ficou o sonho.

Depois, o João cirandou pelo Porto e os nossos encontros foram sendo marcados pela casualidade. Muitos anos depois mudou de ares e continuou a fazer o que sempre fez desde que, um dia decidiu abandonar a antiga Escola Superior de Belas-Artes do Porto, ESBAP. Razões: não suportou a presença de agentes da PIDE nos exames aos colegas. Ou dito de outra forma, prisioneiros políticos que, mesmo presos pelo crime de delito de opinião pelo aparelho repressivo da Ditadura eram transportados à ESBAP com o objectivo de puderem concluir as respectivas licenciaturas em Desenho, Pintura, Escultura. Findas as provas regressavam à prisão.  (*)  “ Isso fez-me uma grande confusão, a mim e à minha geração o que nos levava a fugir em muitas direcções. Eu pertenço a essa geração. Abandonei tudo e resolvi ser pintor. Nessa altura, o meu pai deitou as mãos à cabeça e pensou vai-lhe acontecer o pior”, leio numa entrevista concedida há cerca de um ano ao diário digital rostos.pt
Na mesma ocasião, João Martins lembrou ter participado em cerca de 420 exposições em diferentes espaços pelo mundo fora, sempre em busca de novos caminhos. Porém, foi a aguarela, sempre a  aguarela que se apoderou dele e o pintor encontrou neste domínio privado a exteriorização para a sua sensibilidade e talento. “A minha nota é a aguarela. Virei-me para a aguarela e nunca mais sai e continuo na aguarela. Embore pinte tudo o resto e use todas as técnicas. Digamos que estou no grupo dos aguarelistas com cartaz cá no nosso país”.
Mas quem foi João Martins? Os dicionários simplificam tudo e dizem o seguinte: “Foi  um pintor neo figurativo, de raiz geométrica, de orientação abstracizante e mais recentemente abstrato”.  Há cerca de dois anos tive notícias suas e como sempre tive desejo de possuir alguns trabalhos de sua autoria desloquei-me à casa da sua companheira de sempre e comprei três bonitas aguarelas. Fazem parte da minha colecção de afectos. Hoje, João Martins resolveu fechar as pastas da sua vasta colecção de pinturas, encostar o tripé, a paleta, os pincéis, as tintas, as aguarelas. Ficou a sua obra gigante, o seu sorriso bondoso, o jeito de cativar amigos para a vida. Oiço Vivaldi e “L´alta lor gloria immortale”. É a minha homenagem na hora do adeus.

 
(*) Para quem perdeu a memória, a PIDE existiu mesmo e durante anos funcionou num palacete situado na Rua do Heroísmo, hoje transformado em Museu Militar do Porto. Quase 40 anos depois de Abril, a  Associação 25 de Abril da qual fiz parte ainda não conseguiu, por falta de autorização dos generais e ministros da Democracia, afixar uma simples placa com a seguinte inscrição: “Aqui funcionou a PIDE, polícia política do regime Fascista”.
 
 

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