“Viagem à Itália”


Roubei este título [“Viaggio in Italia”] ao mais belo filme de Roberto Rossellini, o mestre do cinema neo-realista italiano do pós-guerra, autor de “Roma, Cidade Aberta”, outro fresco cinematográfico da minha memória cinéfila. A minha viagem a Itália tem outro percurso, propósito, ambição.  Não pretende fazer o roteiro exaustivo dos lugares, antes e só partilhar algumas ideias, momentos, por vezes fugazes, encontros sempre felizes com a arte e a beleza do olhar. Cito de memória um dos diálogos do último filme dos irmãos Taviani, “Cesare deve morire” quando um dos prisioneiros após a descoberta da arte disse esta frase espantosa: “A cela é agora a minha prisão”. Sublime. Acrescento: as filmagens decorreram numa prisão de alta segurança de Milão e a obra foi baseada num texto de ShaKespeare. Para mim, as viagens representam sempre um salutar exercício de Liberdade, conhecimento, aprendizagem e descobertas, geralmente feitas por minha conta e risco,  sem guias por companhia a debitar os estereótipos habituais. Viajar constitui sempre prazer, fruição cultural. Pode parecer um cliché, mas é aquilo que eu sinto e penso. Sair de casa, fazer uma pausa nas rotinas diárias, ir mais além do nosso bairro ou paróquia constitui sempre um duplo prazer. Faz bem à alma e alimenta os sentidos. Por isso, antes da partida procuro fazer o meu trabalho de casa, pesquiso coisas na Net e nos livros,  folheio prospectos e vou, inevitavelmente, aos roteiros. Geralmente, têm bonitos textos, fotos e ilustrações de encantar. Mas, não dispenso os amigos, as histórias contadas na primeira pessoa do singular já que estas traduzem vivências que nenhum guia do mundo, Michelin ou American Express conseguem publicar, editar, contar.
Em viagem tento saber como funciona a cidade e articulação com a face urbana e paisagística, o modelo de transportes (ter boa rede de metro é fundamental para a mobilidade e mais ainda para um turista acidental pouco endinheirado) e depois, segue-se a descoberta do património edificado, os museus, as visitas aos palácios, a selecção dos concertos que merecem a pena assistir, passear pelos centros históricos,  procurar conhecer a gastronomia local e claro, as pessoas, suas curiosidades e modo de estar. Por isso, a descoberta é sempre um fascínio permanente e por vezes, o pormenor, por mais insignificante que seja ao olhar de outros, faz para mim toda a diferença. São estes momentos que ficarão para sempre gravados na minha memória. O resto vem nos livros.

Roma: Cidade Eterna

Talvez devido à minha paixão por Itália, recordo-me de andar completamente extasiado pelas ruas de Roma, já que, durante anos e anos, apenas pude observar a Cidade Eterna através de fotos, livros e filmes de Fellini, Rossellini, Visconti. Percorrer as suas avenidas tem outro sentido e magia. Como foi bom percorrer a Piazza Navona, circular pela Fontana dei Quattro Fiumi, observar a famosa escultura de Bernini e depois, ficar a olhar deslumbrado para a Fontana di Trevi, famosa pelo filme de Fellini “La Dolce Vita” e pelo beijo de Mastroianni à sueca Anita Ekeberg. Como em Roma sê romano, fui visitar as ruínas do Coliseo mandado construir pelo Imperador Vespasiano (o tal que organizou combates mortais entre guerreiros e animais selvagens para gáudio público…) e como não podia deixar de ser entrei no Panteão de pórtico clássico, peça “maravilhosa da engenharia romana” construída entre 118 e 125 d.C.
Seguiram-se outras viagens históricas e apaixonantes. No Vaticano, observei tudo o que foi possível: a Basílica de S. Pedro, a  Capela Sistina, os frescos de Miguel Ângelo, obras de arte de incalculável valor artístico e patrimonial, fausto, riqueza, arquitectura barroca. Em Milão, por entre muita pintura de Bellini, Rafael, Tintoretto e Caravaggio, tive o prazer de entrar por dez minutos e sem direito a fotos no convento de Santa Maria delle Grazie para admirar A Última Ceia, de Leonardo da Vinci. E cereja em cima do bolo, naquela noite tive o privilégio de ouvir a famosa “Aida”, de Verdi, no esgotadíssimo Scala.



Génova: cidade aberta à modernidade







Quem chega à gare de comboio de Porta Príncipe, no centro de Génova e entra pela primeira vez na urbe, poderá ficar atordoado com tanto movimento, trânsito intenso nas horas de ponta, longas avenidas, palácios, igrejas de estilo barroco, edifícios com pátios dentro adaptados a universidades e museus, estabelecimentos de comércio tradicionais e lojas “gourmet”, diversas instituições bancárias e financeiras internacionais.
Capital Europeia da Cultura em 2004, Génova elegeu Colombo como seu herói principal. A simbologia está em todo o lado. O aeroporto chama-se Cristóvão Colombo e junto à estação de caminho-de-ferro, na Piazza Acquaverde, lá está a imponente estátua do famoso genovês descobridor das ilhas das Caraíbas, nas Antilhas e, mais tarde, o golfo do México. De Colombo levei na bagagem alguns escritos, textos de historiadores e na memória um lúcido filme de Manoel de Oliveira, “Cristóvão Colombo, o Enigma”, realizado em 2007, espécie de roteiro sobre a vida e obra do genovês, mais a epopeia marítima levada a cabo pelo navegador sob as ordens dos reis de Espanha em 1492, as polémicas sobre a sua nacionalidade.
Palco e residência oficial dos reis de Itália de Sabóia, Génova tem várias faces: lá do alto, vê-se uma enorme cidade aberta ao mar, prédios altos e ruas estreitas à mistura com avenidas luxuosas, como a Via Garibaldi, local de excelência e símbolo de representação da grande burguesia local, mais o Palazzo Bianco, com obras de artistas genoveses, a Lanterna de Génova, ex-libris da urbe classificada pela Unesco, como Património Mundial da Humanidade, mais a riquíssima catedral. O comércio é intenso e a crise, aparentemente, não se faz sentir. Os cafés e esplanadas estão cheias, as compras transformam-se numa festa.
Quando a cidade é vista de perto e percorrida a pé observa-se bom planeamento urbanístico, sem as habituais catedrais de consumo típicas das socieadades em vias de desenvolvimento e à mercê dos grandes grupos económicos. O comércio tradicional não foi asfixiado e funciona. Um exemplo: os genoveses não deixaram de frequentar o mercado local - localizado a pouca distância do edifício da Bolsa de Génova e da Ópera Carlo Felici -, onde é possível comprar hortaliças, legumes e frutas, produtos frescos, queijos e uma variedade enorme de vinhos de várias regiões vitivinícolas de Itália. A dois passos deste quarteirão de prédios com gente dentro, fica a Via S. Vincenzo, uma das mais concorridas do coração de Génova, com lojas de roupa de marca, relógios e objectos para o lar, casas de chã, cafés, restaurantes. Está tudo aberto de manhã à noite sem intervalo para o almoço.
Em termos culturais a dificuldade está na escolha. Além da obrigatória viagem à casa onde terá vivido Cristóvão Colombo (em Savona, cerca de 15 quilómetros de Génova) impõem-se visitar o Farol de Génova (tem tanta importância para Génova como a Torre dos Clérigos para o Porto); uma parte da igreja gótica de Santo Agostinho, bombardeada no decorrer da II Guerra Mundial e o mosteiro, entretanto, reconstruído para acolher o Museu de Arquitectura e Escultura da Ligúria; a Galeria de Arte Moderna, o Palácio Real (séc. XVII) onde entre outras pinturas o visitante poderá apreciar a “Crucificação”, de Van Dick e imperdível, uma visita demorada ao Palácio Ducale, onde até 15 de Abril está patente uma importante e bem documentada exposição de dois artistas fundamentais da arte mundial: Van Gogh e Gauguin.
Com Génova a exibir bom gosto, sobriedade e respeito pelo seu legado arquitectónico e patrimonial já só apetece voltar e fruir uma cidade marítima, porto de abrigo de marinheiros e mareantes, matizada e cheia de contrastes, “impossível de classificar”, na opinião de Gonçalo Cadilhe. Mais uma razão para reler um precioso livro escrito em finais dos anos 50, pelo poeta Daniel Filipe, intitulado “Discurso sobre a Cidade” e meditar na sua bela frase: “São múltiplas as faces de uma cidade. Matinal ou nocturna, para a conhecer é indispensável descobrir todos os seus disfarces. Quem dela se abeira em busca do rosto único e imutável, busca a simplicidade, que é engano, a evidência no que é íntimo, misterioso, oculto. Diversa e contraditória aos olhos que a percorrem com amor, nisso reside a sua maior grandeza e a sua força”.
Quer seja no Porto ou em Génova o turista apressado não vê nada. Só com tempo e atento aos pequenos pormenores será possível sentir algo sobre a urbe e as suas gentes.



O casario de Bérgamo


Em Bérgamo, carregada de simbolismo e casario impecavelmente recuperado, percorri o notabilíssimo centro histórico e o contraste com o casco antigo do Porto foi inevitável. Em Bérgamo, existem lojas abertas, comércio, museus, gente a viver. Na Invicta e apesar das sucessivas promessas está quase tudo por fazer e algumas das intervenções não tiveram o êxito esperado. Veja-se, por exemplo, os resultados (desastrosos) da recuperação efectuada nas freguesias da Sé, Vitória, Miragaia, investimentos de milhões, sem resultados palpáveis e qualidade de vida aceitável, com tráfico de  droga a ditar as suas leis… Em Bérgamo o funicular funciona diarimente e transporta os turistas até à parte mais antiga do burgo e lá do alto observa-se a parte mais moderna da cidade. Um deslumbramento. No Porto, o elevador da Lada, junto à ponte Luis I está muitas vezes desactivado ou funciona quando Deus quer. Voltarei a Bérgamo para conhecer e estudar melhor as suas villas, palácios, igrejas, monumentos, museus, percorrer as suas ruas e muralhas. E entrar na majestosa catedral barroca situada no alto da colina.       

  

O canto dos monges em Veneza


Nesta Viagem à Itália não podia deixar de conhecer a Veneza, décor de filmes e romances, sempre belíssima, deslumbrante, mágica. Não sei se foi um sonho, mas sair do avião, aterrar no aeroporto Marco Polo, entrar num autocarro até aos limítrofes da cidade e depois, viajar pela Laguna de vaporetto até ao Palazzo Ducale foi uma experiência única. Ou estarei eu a rever as imagens de “Morte em Veneza”, de Visconti? Seja como for, deixei-me encantar e isso basta. Por entre um café na faustosa Praça de S. Marcos e os tesouros da Basilica di San Marco parei longos minutos no Museo Correr para observar “A Pietà”, de Giovanni Bellini. Veneza não bem uma cidade como as outras. Antes, uma obra-prima da pintura e da arquitectura, onde em cada silhueta do canal ficam situados pátios, largos, jardins, edifícios de diferentes estilos, cada um mais belo que o outro, espaços com história como o majestosos Teatro La Fenice, alfarrabistas, galerias, museus com muita pintura de Klint, mais Picasso, Pollock, Braque, Dalí, Bacon e Kandinsky (no Il Pallazzo Nonfinito, da colecionadora americana Peggy Guggenheim) e como não podia deixar de ser lá fui pela Laguna   explorar as ilhas Murano e Burano, a primeira famosa pela  indústria vidreira; a segunda pelo artesanato dos linhos e rendas. E prazer dos prazeres: por sugestão de um amigo lá fui directo ao restaurante de encantar, “Da Romano”, com comida de eleição, mesa impecável (só é preciso ter cartão goold) e outra descoberta, fiquei a saber que o estabelecimento todo decorado com inúmeras obras de arte, pintura e desenho, já vai na quarta geração e ao longo dos anos foi palco de encontro de gente famosa das artes e das letras como Hemingway, Pirandelo, Matisse, Chaplin, Alberto Sordi, Moravia, Ezra Pound, uma vasta e infindável galeria de personalidades ilustres. Confesso que fiquei mais rico e nem a conta fez perder a vontade de lá voltar…
Como a vida também é feita de momentos e acasos celestiais não regressei de Veneza sem antes dar um pulo à pequena ilha de San Giorgio Maggiore, cujo convento acolhe há vários séculos uma pequena comunidade de monges. Pois bem: ao nascer do dia, cerca das 6 da manhã, pude então ouvir salmos, matinas, cântico gregoriano que encheu a minha alma de paz e espiritualidade. Um dia destes vou voltar a Veneza e a San Giorgio Maggiore.

A luz mágica em Cinque Tierre

Qualquer cidade de Itália por mais pequena que seja a sedução está ao virar da esquina (será do meu olhar?) e a beleza patrimonial continua a fazer inveja a muitos outros países da Europa do Sul. Como  nem Berlusconi conseguirá apagar a magia deste belo país, voltei há dois anos ao reino da Ligúria e às Cinque Tierre, cinco aldeias classificadas pela Unesco como Património Mundial da Humanidade, situadas na Riviera Italiana, com o mediterrâneo a serpentear a paisagem. Ainda hoje retenho a luz que iluminou aquele final de tarde em Riomaggiore, a linha de horizonte a dividir o céu do mar, mais cores e aromas de Manarola, Vernazza, Corniglia.


Firenze e as “Portas do Paraíso”

Dexei para fim desta “Viagem à Itália” algumas notas sobre Firenze, a capital do Renascimento, centro artístico e cultural por excelência, pátria de Dante, Petrarca, Maquievel, Miguel  Ângelo e Botticelli. Recordo-me como se fosse hoje: aterrei em Pizza num final da tarde e uma hora depois, cheguei perto desta cidade-museu. Só dei tempo ao tempo para deixar a bagagem no hotel e o cansaço volatizou-se. Quando me aproximei da Catedral de Santa Maria del Fiore perguntei como foi possível ter andado tantos anos sem entrar pelas Portas do Paraíso (só Miguel Ângelo traduziu numa frase tanta riqueza artística) e não ter percorrido os caminhos até à Ponte Vecchio ancorada com lojas de antiguidades, joalharias e ourivesarias das principais marcas internacionais, visitado a igreja de Santa Croce (onde está o túmulo do florentino Miguel Ângelo) mais os frescos de Giotto, as galerias Uffizi, a arte gótica de Botticelli, a Piazza della Signoria, sempre repleta de turistas de todo o mundo, o Pallazzo Strozzi e a igreja de San Lorenzo, mais os frescos e retábulos de Santa Maria Novella, a casa onde viveu Dante ou, pela manhã, sentir o cheiro das flores no mercado central de Firenze, um notável equipamento da arquitectura do ferro e do vidro (idêntico ao antigo mercado Ferreira Borges, junto ao Palácio da Bolsa, no Porto) onde milhares de florentinos e turistas fazem diariamente as suas compras. Como A Vida é Bela nesta Viagem à Itália. 
Próxima etapa: Torino, antiga capital de Itália, entre 1861 e 1865, pátria de Emanuel Filiberto de Sabóia. 


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