Em Bafatá, num casa humilde nasceu Amílcar Cabral. O edifício é hoje um centro de estudo e memórias.
Estou a pouco menos de 24 horas de aterrar na pátria de
Cabral, um dos heróis da minha juventude, o único merecedor de honrarias em toda a
história (trágica) da Guiné-Bissau, o líder incontestado deste pequeno país de
África. Cabral não foi só o líder do PAIGC que desafiou a Ditadura de Salazar/
Caetano ao declarar a independência nas matas de Medina de Boé, antes o
visionário e sonhador de um país livre, fraternal e independente, o guerrilheiro
e intelectual admirado pela comunidade internacional. Infelizmente, a
Guiné-Bissau volatizou-se. Em golpes e contragolpes, transformou-se numa placa
giratória do tráfico internacional de droga com níveis de pobreza extremos, onde
a esperança média de vida ronda os 50 anos, onde falta quase tudo. Só a palavra
esperança não foi riscada do mapa.
Um aviso à navegação: não vou à Guiné-Bissau por
nostalgia ou recordação de alguma façanha de guerra. Sou anti-herói. Estive na guerra
colonial entre 1973/74 (Batalhão Caçadores 4518, 2ª Companhia de Caçadores, Cancolim,
Bafatá) mas o destino e a sorte andaram de mãos dadas: durante o tempo em que por
lá andei nunca dei um tiro, nunca o aquartelamento teve um ataque do PAIGC, nunca
a companhia sofreu uma emboscada. Nada de nada. Adianto um pequeno pormenor:
caso o PAIGC tivesse colocado as suas armas na mira de Cancolim as nossas
tropas não tinham qualquer hipótese de sobrevivência. Morríamos todos. Não tínhamos
preparação, estratégia, força anímica, capacidade de resposta. Por isso, quando
aconteceu o 25 de Abril – o dia mais feliz da minha vida – e meses depois zarpei
de Bissau em direcção a Lisboa (onde a bordo do Uíge ouvi vezes sem conta “Wild
World”, de Cat Stevens) senti um enorme alívio, um sentimento único de
Liberdade, a certeza que os dois povos tinham muito a aprender em termos de
cultura, conhecimento, partilha, história. E um património linguístico que os sucessivos
governos até hoje têm desbaratado.
Quarenta anos depois vou regressar, finalmente, a Bissau.
Na bagagem transporto muitas memórias deste pedaço de África, um povo maravilhoso,
humilde, fraternal, amigo, mais as cores e aromas da paisagem, as mangas e as papais
que saboreei em doses duplas para enganar a fome e revejo as lavadeiras com os seus
trajes coloridos a caminho da bolanha, a luta diária pela vida travada pelas mulheres, as
crianças subnutridas à entrada do aquartelamento e por instantes, recordo a
manhã onde escutei pela primeira vez os gritos lancinantes da jovem vítima de
circuncisão genital. Está tudo gravado na minha memória. Como o futuro começa
hoje decidi voltar à Guiné-Bissau com vontade de aprender, ajudar quem mais
precisa e perceber como se pode viver com tão pouco a troco de quase nada. Se
calhar vou ficar mais rico. Cabral ka muri/mori (Cabral não morreu).
Adoraria tb essa tua vivência após 40 anos ... Parabéns
ResponderEliminarM. Moura