Memórias do "Cinema Paraíso"


No tempo em que o Porto andava a pé ou de bicicleta, percorri vezes sem conta a Rua dos Mártires da Liberdade. Nem por sombras foi um martírio calcorrear esta artéria de prédios altos e roupa a secar nas varandas, antes um prazer com destino marcado.
Foi sempre o corredor de acesso ao antigo Cinema Carlos Alberto, na Rua das Oliveiras, imperdíveis sessões de western, “A Cavalgada Heróica”, de Ford, os bons contra os maus à mistura com outros títulos escolhidos a dedo pelos meus amigos do Cineclube do Norte, como “O Fugitivo”, de Nicholas Ray, “Providence” e “Hiroshima, Meu Amor”, ambos de Resnais, “A Flauta Mágica”, de Bergman, “Kagemusha/A Sombra do Guerreiro”, de Kurosawa, entre quilómetros de filmes vistos com prazer redobrado.
Como naquela altura tinha tempo para quase tudo continuava a caminhada até Cineclube do Porto e por lá ficava até às tantas lendo e conversando sobre cinema, admirando filmes do pós-guerra, Vittorio De Sica, Antonioni, Fellini, Visconti, mais os clássicos de todos os tempos, Orson Welles, Eisenstein, Cukor, Dreyer, Tati, Hitchcock.
Faço um flashback para acrescentar o seguinte: na antiga Rua da Sovela com prédios esguios e gente a viver em sobressalto, lembro-me do roufenho eléctrico 7 a circular devagarinho em direcção ao Jardim da Praça da República, dantes cheio de camélias e aos domingos viveiro de soldados e criadas de servir da burguesia portuense, os deserdados de todas as condições sociais à espera de entrar nos Albergues Nocturnos do Porto, cafés e tascos, adeleiros, padarias, mercearias, alfarrabistas, antiquários de paixão, como a casa do meu amigo Severino Oliveira, diseur nas horas vagas, poeta, homem generoso no trato e no negócio de velharias.
Neste caminhar pela rua que homenageia os liberais de 1829 não posso deixar de lembrar o primeiro cybercafé, a velha casa de penhores de gente aflita (ainda tem porta aberta e pelos vistos o tempo andou para trás…) o prédio da revista Águia, da Renascença Portuguesa, mais a Livraria Académica, do livreiro Nuno Canavez, sempre forrada de preciosidades bibliófilas, raridades, sendo impossível passar ao lado e não ficar de olhos em bico diante da vistosa montra.
O retrato só ficará completo se acrescentar um facto: a estreita artéria já não tem a vida de antigamente. Perdeu gente, existem mais prédios abandonados, outros a pedir recuperação urgente, pouco comércio devido à crise, mas também ao facto de muita gente ter sido “centrifugada” (para utilizar a feliz expressão do meu amigo e historiador Hélder Pacheco), isto é, levada à força para a periferia da cidade e por lá aprender a viver de outra maneira, longe dos amigos e de tudo que possuía na Invicta.
Como o Porto tem várias faces termino o roteiro na Poetria, única livraria no país empenhada na divulgação e promoção da poesia e do teatro. A lojinha envidraçada faz parte do Centro Comercial Lumière e lá dentro já quase nada acontece. O Cinema Lumière, do exibidor Mário Pimentel, encerrou e virou parque de estacionamento e nem as montras coloridas da casa de postais antigos do Porto atraem olhares. Só a Poetria e a loja de flores situada em frente resistem às modas e à crise.
Há poucos meses, um grupo de amigos fundou a Cena Poétrica. Não resisti à boa causa. Objectivo: ajudar a promover iniciativas tendentes a captar mais leitores, gente empenhada em divulgar a poesia. Para nosso contentamento a Poetria é uma barca de muitos sonhos, cerca de 4000 títulos de poesia, livros únicos de Pessoa, Eugénio, Sophia, Pascoaes, Cesário Verde, António Nobre, Mário de Sá-Carneiro, mas também, autores da nossa contemporaneidade, Ana Luísa Amaral, Gonçalo M. Tavares, A.M. Pires Cabral, Al Berto, Eugénio de Andrade. Uma livraria, melhor, um oásis de liberdade e cultura no meio de tanta indiferença, desolação, abandono.
Com tanta gente a fazer de conta que é poeta apetece perguntar: onde está o país de poetas? Na porta virada para a rua continua fixado um poema retirado do livro “Os Lusíadas para gente nova” [Vasco da Graça Moura]: “O inimigo, às vezes, é Castela, que nem bons ventos traz, nem casamentos; outras vezes são Mouros na querela com os cristãos em todos os momentos. E depois, pelo Mundo, ao ir à vela, são muçulmanos sempre e os seus intentos. Camões dá nomes feios e cruéis, de que o menos cruel é infiéis”.
Quem quiser saber mais coisas sobre a Poetria basta aceder ao site da livraria. A poesia serve-se quente e não tem hora marcada para acontecer. Entre as ruas da Sovela e das Oliveiras existem coisas a descobrir. O Porto continua a surpreender-nos ao virar da esquina.
Imagem de perfil de Manuel Vitorino
 
Nasceu no Porto (Paranhos). Estudou História na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, depois a Pós-Graduação em Direito da Comunicação, pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Escreveu durante anos sobre cinema n'O Primeiro de Janeiro e trabalhou 23 anos no Jornal de Notícias. Faz parte da Direcção do Grupo dos Amigos das Adegas e Tascos do Porto. Depois do Porto gosta do FCP mas também de caminhar pelo vale do rio Bestança. A Itália é o seu destino de eleição. Mantém em permanência o blogue http://mautempocanal.blogspot.com.




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