Há 40 anos estava na guerra colonial, Guiné-Bissau, numa
aldeia do fim do mundo, em Cancolim, longe de Bafatá. Quando a madrugada mais
luminosa aconteceu já levava várias operações no mato, quilómetros de caminhadas
por entre trilhos de floresta sempre à espera de um balázio, uma mina debaixo
da árvore, um ataque do PAIGC. Aparentemente, no país dos “coronéis de lápis
azul” o Fascismo estava para lavar e durar. Não existiam mortos nem feridos. Antes
“baixas em combate”, notícias a uma coluna de jornal.
Até ao 25 de Abril vivia num país de partido único, salazarento,
cinzentão, liberdades vigiadas por legionários e pides. Dizer mal do António de
Santa Comba Dão só em voz baixa. O delator tanto podia ser o vizinho “bufo” como
o colega de trabalho. Ler o Avante dava direito à perda de emprego. Distribuir
um panfleto de apoio aos presos políticos à prisão. Tudo era literalmente
proibido. Até um beijo na rua.
Naquela manhã do dia 25 de Abril acordei cedo e a telefonia
só transmitia marchas militares, notícias sobre um “golpe de Estado” em
Portugal feito por militares. “Aqui posto de comando das Forças Armadas” ouvi
vezes sem conta a par de siglas únicas e inimagináveis: “MFA”, “O Povo Unido….”
Estou em África, no meio do nada, fico inquieto, ansioso. Já só queria aterrar
em Lisboa, viver dia e noite, fazer parte da História.
Sintonizo a Emissora Nacional, depois a BBC, mais a
Deutsche Welle, a Voz da Alemanha e nas várias estações oiço sons de gente
sedenta de Liberdade, reportagens de multidões nas ruas de Lisboa e do Porto,
exigências de “Libertação dos Presos Políticos” e “Abaixo a guerra colonial”.
Subitamente, o país está em catarse colectiva, em festa.
E fico colado à rádio de todas as ondas hertzianas. Pelo microfone de um
repórter estimado, Adelino Gomes oiço as primeiras declarações do capitão
Salgueiro Maia, o mais generoso de todos aqueles que ousaram restituíram o país
à dignidade, retenho gritos de Liberdade, o cerco ao quartel do Carmo – onde
Tomás e Marcelo se refugiam antes do exílio dourado para a Madeira e depois o
Brasil - a chegada de Spínola ao palco dos acontecimentos. E digo com os meus
botões: “A Guerra Acabou”.
E assim aconteceu. A 2ª companhia do BC 4518 ainda fez
mais duas ou três incursões pelo mato, mas poucos dias depois da “Revolução dos
Cravos” uma coluna de “temíveis guerrilheiros” do PAIGC ultrapassou o arame
farpado e veio fraternalmente ao nosso encontro. E por magia tanto as Kalashnikov
como as G3 calaram-se de vez.
No quartel o tempo foi vivido em festa, emoções e
lágrimas. Abraços calorosos e confidências. “Nós sabíamos quem vocês eram e o
que faziam em Cancolim”, disse-me um combatente das tropas de Amílcar Cabral. Depois
das cervejas, decidimos continuar a conversa pela noite dentro, trocar de farda
e emblemas, tal e qual como acontece nos jogos de futebol. A minha competição
foi outra. A guerra da Guiné só podia ser ganha pelo PAIGC.
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