Take 1- Uma moradia especial
desenhada à medida do seu dono e feita com a cumplicidade do autor. Local: Rua
da Vilarinha, a curta distância do Parque da Cidade e do mar. Construída como
se fosse “um navio” pertenceu ao cineasta Manoel de Oliveira durante 40 anos e
foi projectada pelo arquitecto José Porto com a colaboração de dois nomes fundamentais
da arquitectura modernista: o Mestre Viana de Lima (decoração) e Cassiano
Branco (arranjos exteriores).
Antes de abandonar a “Casa
da Vilarinha” - onde perpassa “um certo mistério”-, o autor de “Non ou a Vã
Glória de Mandar” registou a sua despedida através das suas vivências,
recordações, alegrias, angústias. Chamou-lhe “Visita ou Memórias e Confissões”
(1982) e por vontade (ou pudor?) do cineasta só após a sua morte - ocorrida no
mês passado - pode ser visionada.
Como “a ficção é a melhor
realidade do cinema”, Oliveira construiu um filme dentro de outro filme e ofereceu-nos
um documento único, cheio de autenticidade, revelador de uma vida cheia vivida
com nobreza e carácter. Depois da ante-estreia mundial no Porto (Teatro
Municipal Rivoli) o filme foi projectado em Lisboa (Cinemateca Portuguesa) e
estará no próximo Festival de Cannes. Já tem assegurada a exibição em Portugal.
Take 2- É um filme belíssimo
e comovente aquele que o realizador nos
legou. Por vezes intimista, outras revelador do pensamento e percurso de personalidade
ímpar de Oliveira, “Visita ou Memórias e Confissões” desvenda-nos facetas menos
conhecidas do cineasta, o seu pensamento filosófico sobre a religião e o catolicismo,
a ideia de Deus, a virgindade e a castidade,
as mulheres e o cinema. “As mulheres dos meus filmes exercem um fascínio sobre
mim”.
O décor desta obra com texto
de Agustina Bessa-Luís e voz off dos
actores Diogo Dória e Teresa Madruga, desenrola-se entre o interior da habitação
e os jardins cheios de flores, muitas dálias vermelhas, árvores centenárias. Neste
espaço físico desvendado à curiosidade pública a câmara circula pelos aposentos
envidraçados, filma as diferentes divisões da moradia exibindo pinturas, móveis,
objectos e adereços, fotos, muitas fotos de família (“os retratos nunca são
reais”, diz o cineasta) e de amigos (entre os quais, o poeta José Régio) colecções
de búzios e conchas, talvez a alegoria simbólica com o mar que Oliveira tanto
gostava, estantes cheias de livros e algumas confissões: “A morte não me
apavora. Gosto da vida e só o amor lhe pode dar sentido. A morte não é para mim
uma coisa abstrata”.
Take 3 - Oliveira viveu na
“Casa da Vilarinha” até aos 73 anos, mas foi obrigado a abandoná-la devido à
hipoteca contraída por causa de um empréstimo bancário [ex-Banco de Fomento
Nacional] destinado à compra de máquinas para a empresa familiar (Fábrica de
Passamanarias e Malhas, situada na Rua 9 de Julho, à Arca d´Água) que herdou do
pai.
Uma vez mais a vida
trocou-lhe as voltas: depois da “ocupação selvagem” ocorrida no dia 4 de Março
de 1975, o autor de “Benilde, ou a Virgem-Mãe” ainda foi bater a várias portas
em busca de uma solução, nomeadamente à Câmara do Porto e à Universidade, mas
sem resposta viu-se obrigado a vender a moradia onde viveu “a fase mais
importante” da sua longa existência. E assim, sem alternativas, mudou-se no
início da década de 80 para um apartamento situado na Foz do Douro onde continuou
de forma incessante e apaixonada o seu amor pelo Cinema.
Take 4- Existem outros percalços
que Oliveira não deixa de contar neste filme testamento e até agora inédito. Num
“flash-back” com a memória recorda os dias na prisão (onde chegou a ser
interrogado pelo tenebroso inspector Sachetti, da PIDE) pelas “coisas
desagradáveis” ditas no colóquio sobre o filme “Acto da Primavera” (1963) realizado
na Associação de Jornalistas e Homens de Letras do Porto. Nos corredores do
Aljube cruza-se com o escritor Urbano Tavares Rodrigues, também ele preso
político e reconhecido militante da resistência antifascista.
Conforme Oliveira testemunha,
a sua detenção foi patética e ocorreu fora do Porto, na Quinta de Portelinha, em
Santa Marta de Penaguião, numa altura em que estava doente e acamado. Mesmo
assim, foi obrigado a levantar-se e contra a vontade do médico, levado à força
para a delegação da PIDE, à Rua do Heroísmo e depois transportado num velho
Citroen, a famosa “arrastadeira” dos anos 40, para o Aljube, onde foi vítima de
maus tratos físicos e psicológicos.
Um pormenor: nesta quinta de
lazer e refúgio da família, Oliveira chegou a receber inúmeros amigos, críticos
e cineastas, André Bazin, Jean d´Yvoire, Jean-Pierre Brossard (antigo
secretário-geral da Federação Internacional de Cineclubes) Maurice Pialat,
Paulo Rocha, de quem Oliveira gostava muito, José Vieira Marques, fundador do
Festival de Cinema da Figueira da Foz, além do escritor José Régio, entre
muitas outras personalidades ligadas às artes e às letras.
End- Na cerimónia realizada
no Rivoli- cujo auditório principal perpetuará o nome de Manoel de Oliveira - a
viúva do cineasta, Dona Maria Isabel não escondeu a emoção por participar na
homenagem ao seu marido e o carinho do público da cidade onde nasceu Manoel de
Oliveira e o cinema enquanto arte das imagens.
Sempre acompanhada pelo presidente
da Câmara do Porto, Rui Moreira e o vereador da Cultura, Paulo da Cunha e Silva,
descerrou uma placa à entrada da sala e depois assistiu à projecção deste filme
a “título póstumo”, mais um a acrescentar à longa carreira do autor de
“Benilde”. No final, uma longa ovação do público agradeceu de pé o registo
intimista do cineasta desaparecido há cerca de um mês com 106 anos e após ter conseguido
rodar em condições bastante difíceis “O Velho do Restelo”. Antes da sessão
começar, Jorge Trêpa subiu ao palco e leu um texto escrito pelo avó quando em
1998 festejou 90 anos: “Pediu, caso amanhã não estivesse, para avisar que tinha
ido filmar”.
O legado cinematográfico e
ético de Oliveira ficarão para a vida, mais o seu exemplo de cidadania, coragem
e inteligência para ultrapassar as muitas dificuldades que encontrou antes e
depois de Abril para filmar. “Sou um Homem de muita dúvida e muita fé”, diz o
autor desta “Visita ou Memórias e
Confissões”. Só um sábio tem tantas certezas no futuro.
Nota: Em 1975 tive o privilégio de entrar pela
primeira e única vez na “Casa da Vilarinha”. Tal gesto só foi possível de
acontecer graças à cumplicidade e amizade estabelecidas com os amigos Henrique
Alves Costa (durante muitos anos o meu herói do mundo do Cinema) e André de
Oliveira e Sousa que, neste tempo, contribuíam de forma empenhada na
dinamização cultural do Cineclube do Porto, com sede na Rua do Rosário.
Recordo-me de ver o cineasta Manoel de Oliveira sorridente, conversa afável e
entrar nesta moradia única, admirar jardins enormes rodeados de árvores de
grande porte. Só nos filmes tinha visto uma casa assim. Como não podia deixar
de ser, a conversa andou à volta do cinema. Manoel de Oliveira já nesse tempo
era considerado o mais ilustre de todos os cineastas e a minha curiosidade
aumentou à medida que ia escutando os seus projectos e as dificuldades que
encontrava na obtenção de subsídios para filmar. Volvidos 40 anos, estou
sentado num teatro cheio de referências pessoais e assisto com emoção à
exibição de um filme com muitas memórias e recordações. Por instantes, voltei a
entrar outra vez na misteriosa moradia e pergunto como foi possível ao cineasta
ter perdido uma casa inconfundivelmente ligada à sua vida sentimental e
afectiva. Definitivamente, o mundo não foi fácil para Oliveira.
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