Cineclube do Porto: A minha casa do cinema




Image de Cineclube do Porto: O Passado e o Presente
“Stromboli” é uma das obras que testemunham o génio e a humanidade de Roberto Rossellini.

 



Aprendi a gostar de cinema numa casa de Resistência à Ditadura, o Cineclube do Porto/Clube Português de Cinematografia. Foi lá que comecei a admirar os primeiros grandes filmes da minha vida, onde aprendi a gostar e amar o Cinema.
Recordo-me de subir as escadas em caracol do prédio da Rua do Rosário, em frente ao Jardim do Carregal e olhar com cara de espanto e admiração os cartazes de “António das Mortes”, do brasileiro Glauber Rocha, ou o proibido “Ivan, O Terrível”, de Eisenstein, admirar as máquinas de filmar em Super 8 autênticas relíquias de um museu de cinema por inventar. Recordo-me dos filmes de Luís Vilaça, como “Acordar com o Douro em casa” (1978), “O Camelo não fuma” (1980), “O Último comboio” (1984) e de conviver com diversos cineastas como Aurélio Costa, Alves Sousa, Moreira de Pinho e Mário Silva, entre outros nomes que faziam cinema por paixão na secção de Cinema Amador.
Como a Sétima Arte dominava as minhas atenções por lá ficava a assistir à projecção de centenas de filmes de todo o mundo, cinematografias da Europa de Leste completamente desconhecidas e proibidas num país cinzento, marcado pela Censura e orgulhosamente só. Nestes “Verdes Anos”, o Clube Português de Cinematografia (CCP) foi não só uma das maiores instituições culturais da cidade, como também a minha segunda casa, onde, ano após ano, a criteriosa programação anunciava sempre um lote de filmes fundamentais para o conhecimento, muitos deles ainda hoje referência da arte cinematográfica mundial.

De Sicca a Antonioni

A lista é longa, mas sublinho o emblemático “Ladrões de Bicicletas”, de Vittorio de Sicca, um dos mais importantes do cinema neo-realista italiano, depois “O Eclipse”, de Antonioni e “Accatone”, de Pasolini, mais tarde deixei-me deslumbrar pela obra de Grifith e pelo seu memorial “O Nascimento de uma Nação”, ou acompanhar a mais completa retrospectiva do cinema dinamarquês feita até hoje no Porto – graças aos bons ofícios de um homem bom e generoso, o cineclubista Manuel Poças Pintão – e onde entre outros títulos foi possível assistir, pela primeira vez, à exibição da obra-prima de Dreyer, “A Paixão de Joana D’Arc”. De descoberta em descoberta, os amantes do cinema conheciam nesta altura o cinema proibido de Leste, com semanas dedicadas ao Novo Cinema húngaro, polaco e soviético, uma heresia para o Estado Novo e uma afronta para os zelosos “coronéis da Censura”.
Porém, numa noite de boa memória exibiu-se “A Greve”, de Eisenstein, um filme icónico e revolucionário para aquela época, cujas imagens provocaram o deslumbramento e fascínio. A sala ficou a abarrotar e no final ouviram-se palmas no outro lado da rua. Por uma noite, respirou-se o sabor da Liberdade e todos ficaram a conhecer melhor o genial Eisenstein e uma das obras fundamentais da História do cinema mundial.

Rossellini e Visconti

Os ciclos sucediam-se uns atrás dos outros, atraindo cada vez mais público, gente interessada em cinema. Num ano, 1966, foi a descoberta do novo cinema italiano (cujo ciclo intitulado “O Cinema e a Guerra” incluiu uma selecção dos melhores filmes da época realizados por Rossellini, Visconti, Fellini); no ano seguinte foi a vez do cinema espanhol e o conhecimento de alguns títulos como “As Idades do Amor”, de Manuel Summers, “Nove Cartas a Berta”, de Basílio Martín Patino, além de dezenas de filmes de Saura, Buñuel, Berlanga. Muitas outras cinematografias e ciclos foram projectados na pequena sala do CCP.
Naquela altura, fomentava-se o debate, a troca de ideias, a crítica. Em 1967, remando contra a maré do conformismo, Henrique Alves Costa levou por diante uma das mais importantes Jornadas do Cinema Português e conseguiu juntar à mesma mesa realizadores, técnicos, cineclubistas. Foi um momento histórico, já que a partir da Semana do Novo Cinema Português nasceu o Centro Português de Cinema e com este organismo foi possível a apresentação de candidaturas e projectos de financiamento para a realização de filmes fundamentais da cinematografia portuguesa como “Pedro Só”, de Alfredo Tropa, “Brandos Costumes”, de Alberto Seixas Santos, e “O Recado”, de José Fonseca e Costa, onde emerge o rosto e o talento da actriz Maria Cabral.

“Anos de Chumbo”

Quatro anos depois, em 1971, realiza-se novo encontro do cinema no CCP e, uma vez mais, Henrique Alves Costa faz a ponte entre as diferentes sensibilidades estéticas, culturais e políticas. Ainda hoje guardo na minha memória os debates acalorados travados nos “Anos de Chumbo” entre cineastas e cineclubistas, diferenças de opinião e a maneira sábia como Henrique Alves Costa conseguia ultrapassar as dificuldades para chegar ao consenso. Muitas vezes de sorriso sábio, mas sempre gentil e conciliador com os diferentes pontos de vista.
Com a Revolução do 25 de Abril e a Liberdade sonhada, o CCP conheceu outras “Noites de Glória” e chegou a ter mais de 3.500 associados. Foi o mais prestigiado do país e o maior da Península Ibérica. As sessões no Cinema Batalha enchiam-se aos domingos de manhã e a instituição fervilhava de entusiasmo. Em 1977, a palavra Liberdade já não é sentida da mesma forma e, após várias divergências ideológicas, duas listas disputam as mais concorridas eleições de sempre no longo historial do Cineclube do Porto. Até gente transportada em cadeiras de rodas veio votar. A lista A mantinha sócios ideologicamente ligados ao PCP; a lista B integrava vários associados independentes de esquerda, cineclubistas ligados às diferentes secções do CCP, como Manuel Poças Pintão, uma das figuras mais prestigiadas do Cineclube do Porto, o crítico de cinema António Roma Torres, o ex-presidente da Federação Portuguesa de Cineclubes, André de Oliveira e Sousa, e o autor deste texto. Foram momentos empolgantes. A lista maioritariamente afecta ao PCP ganhou (como seria expectável e previsível…) mas ficou uma experiência única e singular vivida por gente que, unicamente, sentia um grande amor ao Cineclube do Porto e ao Cinema.

Alves Costa, o grande timoneiro

Neste registo breve e lacunar (a história do CCP desde a sua génese até à sua agonia, por vezes, quase ao seu desaparecimento, ainda está por contar em toda a sua dimensão cultural e política) não posso deixar de testemunhar o meu apreço e admiração por Henrique Alves Costa, um cineclubista de méritos reconhecidos e a quem o Porto tanto deve. Não sei se algum dia os poderes públicos da cidade terão tempo, capacidade ou sequer memória para lembrar e homenagear quem fez muito pela cultura e como portuense pela sua cidade de paixão. Penso que seria um gesto da mais elementar justiça.
No galarim de gente que fez muito mais pela cidade do que muitos políticos juntos, recordo com emoção Fernando Gonçalves Lavrador, natural de Aveiro, engenheiro de ofício e autor de vários livros no domínio da semiologia e cinema, unanimemente considerado uma autoridade nesta área do saber; Luís Neves Real, professor, matemático, engenheiro, cineclubista, proprietário da empresa Neves & Pascaud, que, entre outros, possuía os cinemas Batalha (mais a sala Bebé), Trindade e Olímpia. Pois bem: foi graças à generosidade e apoio de Luís Neves Real que o CCP conseguiu levar por diante vários projectos e sessões cinematográficas.
Existem, ainda, outros nomes incontornáveis a citar na lista de gente fundamental na história do Cineclube do Porto, como o pintor Augusto Gomes, o cineclubista e homem da televisão António Lopes Fernandes, o arquitecto Mário Bonito e o jornalista Manuel Azevedo, cujos programas e textos ainda conservo na minha biblioteca de cinema.
Entre “O Passado e o Presente” convém, então, continuar a perpetuar uma instituição com relevantes serviços prestados ao Cinema e à Cultura, acautelando por isso, o seu vasto acervo bibliográfico e documental, mais a sua história indelevelmente ligada à cidade onde nasceu o Cinema e que deu ao mundo Manoel de Oliveira.
“O acervo está em fase de catalogação e inventariação de forma a ficar disponível ao público”, assegurou já ao P24 o presidente da instituição, José António Cunha, que, entre outros aspectos sublinha o facto de o CCP estar a funcionar regularmente e preparado para outros voos e projectos. “O Cineclube recuperou a herança e o prestígio abalado há 5 anos. Hoje existem garantias de continuidade. As parcerias entretanto conseguidas com o Instituto do Cinema, Cinemateca Portuguesa, Câmara do Porto e Direcção Regional de Cultura do Norte deram um importante contributo para o CCP voltar a ser o que sempre foi: uma instituição vocacionada para a divulgação, estudo e conhecimento do cinema nas suas múltiplas linguagens estéticas”, concluiu o presidente do Clube Português de Cinematografia/Cineclube do Porto.
Feitas as contas, o mais antigo e influente clube de cinema da Península Ibérica continua presente e a projectar outras imagens para o futuro. Formule-se, então, um brinde de parabéns e votos de mais 70 anos de existência.

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