"Não se pode viver sem Rossellini"


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"Alemanha, Ano Zero" é um dos filmes que a Medeia exibe no Teatro Campo Alegre.






Quando Roberto Rossellini veio a Lisboa em Novembro de 1973 assistir à projecção de “Roma Città Aperta” (1945), uma multidão foi à Gulbenkian aplaudir um dos mais célebres realizadores do pós-guerra italiano e um filme ícone de uma época marcada pelo terror na Europa. O cineasta, a quem a Medeia Filmes dedica um ciclo no Teatro do Campo Alegre, no Porto, até 10 de Maio, nem queria acreditar na apoteose recebida, mas aquela sessão teve um significado especial: não só foi vivida com especial devoção como sentida como um hino à resistência e luta pela Liberdade. O 25 de Abril de 1974 ainda vinha longe… Até Rossellini ficou espantado com a recepção e as longas palmas escutadas no final da projecção foram mais um grito de revolta num país dominado pela Ditadura, a mais velha e caduca da Europa.
Com a Censura à perna, recordo-me que os jornais da época deram a notícia possível do acontecimento, mas a revista “Cinéfilo” (cujos números guardo religiosamente) puxou o acontecimento para capa e no interior transcreveu os diálogos da longa mesa-redonda que teve a participação de João Bénard da Costa (responsável por vários ciclos de cinema na Fundação Calouste Gulbenkian e mais tarde, diretor da Cinemateca Portuguesa) e diversos cineastas da nova geração do cinema português como António Pedro Vasconcelos, Paulo Rocha, João César Monteiro, Fernando Lopes.
Cerca de 40 anos depois revejo no Teatro Municipal Campo Alegre uma boa parte dos filmes de Rossellini e o deslumbramento é enorme tal a frescura e singularidade do seu cinema. É uma espécie de peregrinação que faço todos os dias com redobrado prazer e observo a pequena sala repleta de gente interessada e empenhada. Afinal, quando os ciclos são devidamente anunciados e a programação é criteriosa o público aparece e faz esgotar todas as sessões. Em boa hora andou a Medeia Filmes ao calendarizar este ciclo (Porto e Lisboa) e mais ainda ao prolongar o calendário dos filmes a exibir (alguns nunca exibidos comercialmente) e outros apenas vistos em sessões cineclubistas.
O ciclo abriu precisamente com “Roma, Città Aberta”, com Anna Magnani e Aldo Fabrizi nos principais papéis. Sabe-se que o filme foi rodado em condições muito débeis do ponto de vista financeiro e técnico, mas nem por isso deixa de ser um belíssimo registo de memórias sobre a ocupação nazi numa Itália dilacerada pela II Guerra Mundial, a luta de um padre contra a perseguição e a tirania, um libelo acusatório carregado de dramatismo e onde a emoção não resvala para o rodriguinho fácil por vezes a tentação de alguns autores do cinema neo-realista.
Depois, seguiu-se “Paisà-Libertação” (1946) que no mesmo ano venceu o Festival de Veneza e “Alemanha, Ano Zero” (1948) filmado em Berlim em ruínas através do olhar de uma criança perseguida por um nazi (um dos meus preferidos na vasta filmografia do cineasta) e “Stromboli”(1950) onde a fulgurante Ingrid Bergman reaparece de forma extraordinária depois da sua passagem por Hollywood e com quem Rossellini se apaixonou e casou.
A longa mostra inclui obras particularmente conhecidas dos cinéfilos como “Europa 51” (1952), “Viagem em Itália” (1954) e outras menos exibidas como “A Máquina de Matar Pessoas Más” (1952); “O Amor” (1948) com Anna Magnani, uma das actrizes “fétiche” de Rossellini e “O Medo” (1954) com Ingrid Bergman; o filme/documentário “Índia” (1959); “A Força e a Razão”, uma entrevista conduzida por Rossellini a Salvador Allende, em 1971 durante o governo de Unidade Popular e realizada por Emidio Grego.
O ciclo compreende o visionamento de “Onde Está a liberdade?” (1954), “Viva L`Itália” (1961), “Anima Nera” e “A Tomada do Poder de Luís XIV” (1966) exibido pelo Cineclube do Porto numa das sessões do Cinema Batalha de boa memória. (Será que vai renascer das cinzas este edifício emblemático da arquitectura modernista do Porto?)
Ainda no Teatro Municipal Campo Alegre (com uma azáfama numa vista em termos de programação e espectáculos de dança, teatro e outras artes cénicas) o público poderá admirar uma fabulosa colecção de fotos de filmes intitulada “A Arte (dramática) de Anna Magnani”, pertencentes à colecção do Museu de Cinema de Melgaço, do coleccionador Jean-Loup Passek. “A melhor escola de um actor é o palco”, assinala a actriz que, entre outras coisas elogia o rigor de Rossellini: “Trabalhei melhor com Rossellini do que com qualquer outro realizador. Quando ele prepara uma cena, era sempre a que eu filmava se estivesse no seu lugar. E no entanto (…) ele não deixou em mim nenhum vestígio, não permito a ninguém que me marque”. Percebe-se a mágoa…
“Não se pode viver sem Rossellini”, diz Bertolucci, mas sei que existe um cinema antes e depois de Rossellini. E este ciclo dedicado ao grande realizador italiano é a prova que o cinema feito com arte e emoção resiste às modas e continua moderno. Com uma particularidade: no cinema do Mestre a estética e a ética andam de braço dado.

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