Subir ao céu até à Torre dos Clérigos


Image de A minha primeira subida à torre dos Clérigos
Foto: Arq/André Soares






Quando os portuenses vinham à Baixa fazer compras caminhei muitas vezes pela Rua de Cedofeita e aos meus olhos, aquele corredor de casas de comércio e prédios habitados foi sempre mágico. Ainda hoje não sei explicar porquê, mas sei uma coisa: a meio caminho ficava o Bazar dos Três Vinténs, a minha maior perdição e recordo-me de ficar longos minutos a olhar aquelas montras cheias de fantasia.
O passeio matinal continuava com destino certo, até à Cordoaria, onde está a igreja e a torre dos Clérigos. Será que algum dia serei capaz de subir às alturas e “ver mais de perto o céu”?
Com 10 anos e a 4.ª classe concluída – foi nesse tempo que recebi preciosas prendas, como um carrinho feito em chapa pintada – ainda cheguei a magicar loucas correrias, mas tive medo de destruir o brinquedo –, uma caixa de lápis de cor da Majora para desenhar alguns sarrabiscos, um motociclo da antiga Fábrica Armindo Lopes Moreira e muitos beijos dos meus pais. Guardo tudo na minha memória afectiva.
Porém, numa pausa para férias da antiga Escola Técnica e Elementar Gomes Teixeira, à Praça da Galiza, resolvi dar um salto ao Palácio de Cristal, autêntico jardim das delícias onde volta e meia visitava o zoo maravilha para atirar amendoins ao “Chico”, o macaco mais conhecido do Porto e observar o pachorrento leão. E por ali ficava a olhar o rei dos animais numa imaginária selva africana, mais a passarada de várias cores e o rio a deslizar até à Foz. Com dois tostões no bolso comprava um pirolito e fazia a festança.
Como naquele tempo tinha tempo para tudo e toda a gente andava a pé, bicicleta ou de eléctrico – só os ricaços podiam dar-se ao luxo de ter automóvel – continuei a caminhada até à Cordoaria e parei junto à bonita e elegante torre que, alguns anos depois, vim a saber ter sido desenhada pelo arquitecto italiano Nicolau Nasoni.

O importante é partir


Com 10 anos, pouco ou nada sabia da vida. Por isso, não fiz muitas perguntas ao porteiro, nem fiquei preocupado em saber quantos degraus tinha de subir até chegar ao alto da torre e qual o grau de dificuldade. No meu subconsciente não tinha sequer noção do possível cansaço, das vertigens e, questão importante, será que as “canetas” aguentavam semelhante odisseia? E sem ter lido uma página de Torga – “em qualquer aventura, o que importa é partir, não é chegar” – procurei ganhar coragem para a subida aos céus pela sombria escada em caracol. Muito mais tarde, fiquei a saber que Torre dos Clérigos, com 76 metros de altura, é considerada a mais alta de Portugal e tem 225 degraus, 6 andares e a meio tem um carrilhão com 45 sinos. Em dias de festança a sinfonia atordoa as almas mais piedosas que ainda vivem no Centro Histórico do Porto.
Através das grades de ferro expostas nos diferentes patamares fui observando os antigos Armazéns do Anjo, onde volta e meia entrava com a minha mãe para as compras de meias e camisolas, os eléctricos da minha infância a circular junto ao Jardim da Cordoaria, sempre cheio de gente, funcionários com a farda da empresa onde trabalhavam (STCP) com baú de chapa e merenda dentro, vendedeiras de galinhas e padeiras a atravessar o frondoso espaço verde, mulheres com trouxas de roupa branca à cabeça, poucos automóveis, ardinas a apregoar os três jornais da cidade. Aos domingos, o décor ganhava outra animação: viam-se jovens militares de mão dada com criadas de servir, pais e filhos a dar bolinhas de pão aos patos, o fotógrafo à la minute, o bonecreiro do Teatro dos Robertos, ainda hoje capaz de provocar fascínio e encanto entre jovens de várias idades.

Prédios esguios com clarabóias

Lá do alto, observei mais coisas que ficaram para sempre gravados na minha memória como pontos altos da minha geografia urbana e humana da cidade: a imponente Cadeia e Tribunal da Relação do Porto onde Camilo esteve preso (imaginem, por ter cometido um crime de adultério com a mulher que amou até ao final da vida!), prédios esguios em péssimo estado de conservação, bonitas clarabóias para iluminar as casas em dias de luar, o antigo mercado do Anjo, a sombria fachada da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto (hoje Reitoria da UP), o Hospital de Santo António, a Livraria Lello, crianças aparentemente felizes a guiar carrinhos de rolamentos pela Rua de S. Filipe de Nery, mulheres a fazer pela vida na Rua de Trás e na Rua dos Caldeireiros.
Como aquele Verão de Agosto ganhou mais colorido – por instantes até sobrevoei pelas nuvens e estive quase a tocar o céu –, pude admirar a outra fisionomia da cidade, inimaginável para quem nunca a viu a quase 80 metros de altura. Retenho a Igreja dos Congregados, onde durante anos e anos uma senhora idosa vendeu violetas a devotos fregueses, a Rua de 31 de Janeiro por onde correu sangue na revolta de 1891, a Igreja da Lapa onde está o coração de D. Pedro IV, os seculares armazéns das caves do vinho do Porto e o Mosteiro da Serra do Pilar, o Paço Episcopal do Porto e, claro, o rio mágico a correr lentamente para a Foz do Douro, naquele tempo com vaporetos, barcos rabelos a transportar pipas de vinho no cais de Gaia, barcaças de carvão atracadas na Ribeira do Porto, com homens e mulheres numa azáfama constante feita de suor e lágrimas para sempre imortalizadas no poético filme Douro, Faina Fluvial, de Manoel de Oliveira.

Dias luminosos

Em outros ângulos da torre e com dias luminosos, consegue-se visualizar os telhados de centenas de edifícios e prédios do Porto, o Restaurante Portucale, situado no 14.º andar da Cooperativa dos Pedreiros, a Igreja do Bonfim, a zona Oriental da cidade e lá ao longe, a perder de vista, as curvas e contracurvas dos montes e serranias de Valongo. Quem disse que a cidade era cinzenta e triste só a viu de raspão. Ao longe e admirada dos céus ganha outro colorido, formas, texturas.
Muitos anos depois, retenho as leituras e os ensinamentos do professor e grande investigador portuense Xavier Coutinho (que tive o privilégio de conhecer no decorrer de uma visita ao Palácio do Freixo, igualmente, construído sob o risco de Nasoni) e um precioso livro do historiador Robert Smith. Fiquei mais rico ao ler os seus estudos, ainda hoje referência obrigatória para quem quer saber mais além das pedras. Na minha memória ficará para sempre a odisseia daquele célebre mês de Agosto em que subi à torre mais alta de Portugal, escutei os sons da torre sineira e observei ao perto o enorme relógio – ainda marca o ritmo da cidade –, e em que, depois de atingir o paraíso, olhei com espanto e admiração o Porto da minha infância. Um dia destes voltarei ao lugar onde fui feliz.

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