As neblinas poéticas de António Cruz


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Há 32 anos morria no Porto o pintor António Cruz. Deixou uma obra 
imensa, enorme, aguarelas únicas comparadas a Turner cuja vida e obra ficou imortalizada no belíssimo documentário poético “O Pintor e a Cidade”, de Manoel de Oliveira. Agora, a Fundação Calouste Gulbenkian (FCG) documenta esse enorme legado através de uma excelente exposição sobre o maior aguarelista de sempre, um dos grandes pintores do seu tempo, o artista que, na afirmação de Abel Salazar soube resgatar a aguarela da “banalidade para que a tinha arrastado Roque Gameiro e os aguarelistas portugueses”. Volvidas mais de três décadas faz-se alguma luz sobre o pintor e tenta-se reparar a enorme injustiça. 
São quase 90 quadros expostos na FCG, uma infindável paleta de cores e emoções, paisagens obtidas no “país real” (Fão, Ribatejo, Caxinas, Apúlia) e em algumas cidades europeias (Paris, Escócia, Sevilha) mas, fundamentalmente, a mostra revela-nos o traço inconfundível de um artista singular e de tripé às costas a captar o universo do burgo histórico, o Passeio das Fontainhas, as pontes Luiz I e Maria Pia (que a incúria dos poderes públicos deixa apodrecer…) a torre dos Clérigos, as igrejas dos Grilos e de Santo Ildefonso, o coreto do jardim de S. Lázaro, o Largo dos Leões, o cais das Pedras, a Sé e a Escarpa da serra do Pilar, a Rua Nova dos Ingleses, as neblinas junto ao rio e o casario da Ribeira, um mosaico urbano único imortalizado por um pintor apaixonado pelo Porto.
“António Cruz é o grande aguarelista português do séc. XX. É um artista de uma mestria extraordinária. Além de pintor talentoso soube captar as neblinas, a luz, o granítico das sombras, as pontes e o rio. Só um Homem que viveu intensamente a cidade seria capaz de a captar com este olhar sensível”, disse ao Porto24, José Emídio, pintor e membro da Cooperativa Árvore, cujo organismo organizou a visita à FCG de diversos artistas portugueses e espanhóis.
“É uma exposição de enorme grandeza de um artista único, fundamentalmente ligada à aguarela, a técnica preferida pelo pintor António Cruz e cuja obra imensa continua dispersa por muitos colecionadores públicos e privados. Esta exposição só foi possível graças ao apoio da FCG e do seu presidente [Artur Santos Silva] desde sempre seu confesso admirador e que em boa hora abriu as portas da instituição”, adiantou Laura Soutinho, curadora da exposição patente em Lisboa até ao próximo mês de Outubro. Laura Soutinho organizou em 2007, no Museu Soares dos Reis, a mostra destinada a assinalar o centenário do nascimento do pintor António Cruz.
Na cerimónia de inauguração diversos familiares e amigos, entre os quais, Artur Santos Silva, presidente da FCG (desde sempre admirador confesso do aguarelista do Porto) e Teresa Patrício Gouveia  (que, enquanto secretária de Estado da Cultura levou o Estado a adquirir a Casa de Serralves) muita gente das artes e das letras estiveram na sala de exposições temporárias da Gulbenkian, a maioria dos quais viajou expressamente do Porto para Lisboa para rever a obra pictórica do artista.
“A obra do meu pai influenciou-me imenso na minha obra de joalharia. Quando estou a executar as minhas criações tenho os tons e a luz das suas peças no meu imaginário. Eu cresci com o meu pai a pintar. Foi um pintor único e deixou um legado enorme. Só ele conseguiu mostrar o Porto como cidade romântica, clara e poética”, sintetizou Rosarinho Cruz, filha de António Cruz. “Foi o maior aguarelista português. Um Homem singular. Através da sua paleta conseguiu pintar o Porto e ofereceu-nos quadros de grande poesia”, assinalou o general Ramalho Eanes, antigo presidente da República.
O mesmo sentimento partilhou Paulo Cunha e Silva, vereador da Cultura da Câmara Municipal do Porto:” É um dos grandes artistas do Porto. Antecipou um bocadinho o conceito da cidade líquida que temos vindo a trabalhar na autarquia portuense, já que, a aguarela é o encontro da água com a expressão pictórica. António Cruz deu à cidade granítica a plasticidade que necessitava e uma luminosidade inconfundível”.

No catálogo da exposição (com coordenação de José da Cruz Santos e arranjo gráfico de Armando Alves) o crítico e historiador de arte Bernardo Pinto de Almeida, assinala no texto “Um Desenho de Luz” as razões pelas quais o pintor nunca foi um Modernista “nem jamais o quis ser”, elenca factos que contribuíram para o seu esquecimento no país (o centralismo lisboeta faz parte da mentalidade dos senhores da corte) e traça algumas linhas de força quanto à ideologia do Estado Novo e, particularmente, durante o regime de Salazar. “Obra coerente e densa que, na sua exactidão de leveza, se mostra capaz de captações quase suspensas, mágicas e, que por elas ganha um carácter verdadeiramente poético”, sublinha o professor da Faculdade de Belas-Artes do Porto.
Última nota: conheci o pintor António Cruz (1907-1983) há mais de 40 anos. No mês de Dezembro de 1982, ou seja um ano antes de arrumar a paleta e os pincéis, testemunhei a notável exposição intitulada “O Pintor e a Cidade”, inaugurada na Casa do Infante, no Porto. Afável e sorridente, recordo-lhe a sua pose, a cabeleira branca e olhar feliz enquanto ia explicando aos convidados, entre os quais, o então presidente da República, Ramalho Eanes, os quadros expostos nas paredes do histórico edifício. Na altura foi distribuído  um precioso catálogo (editado pela prestigiada “O Oiro do Dia”, dirigida pelo livreiro José da Cruz Santos) e no interior 20 aguarelas, ilustrações belíssimas e um texto fabuloso de Agustina Bessa-Luís. O Porto de António Cruz continua vivo ao virar da esquina. E envolto em neblinas cheias de poesia.

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