O genial Tati regressou ao Porto



Abençoado Setembro e com ele, o início da retrospectiva dedicada a Jacques Tati, o mais genial dos cineastas franceses da sua geração, autor de filmes únicos, entre os quais o sublime “Playtime”/Vida Moderna (1967) considerado um dos grandes marcos da história do cinema mundial.
Além das obras conhecidas pela maioria do público, a maratona cinéfila inclui a exibição de sete curtas-metragens inéditas em Portugal. Tome nota: o ciclo intitulado “Um Verão com Tati” organizado pela Leopardo Filmes e Medeia Filmes começa amanhã, dia 1 no Teatro Campo Alegre.
Não foram precisos muitos filmes para Tati ser considerado uma referência fundamental do cinema do séc. XX. Mestre entre outros do mesmo ofício, introduziu uma linguagem moderna na arte das imagens e como artesão do cinema, foi construindo um universo fílmico singular, onde não falta o humor, uma atenção especial aos tiques da sociedade da época, mistura de fantasia, criatividade, por vezes um olhar nostálgico sobre um mundo que passou.
Avesso a modernices tecnológicas, alertou-nos para a incomunicabilidade das sociedades modernas. Com ironia, mas também com fantasia, ternura e poesia à mistura. Como seria Tati na era dos smartfhones e dos tablets?
Após ter rodado “Há Festa na Aldeia” (1949), uma festa cheia de comicidade e burlesco, o cineasta deslumbrou meio mundo com “As Férias do Sr. Hulot” (1953) e seis anos após, em 1958, o cineasta estreou “O Meu Tio”, cuja obra ganhou o Óscar para o melhor filme estrangeiro. Uma maravilha de filme que apetece rever sempre, mais ainda observar o pequeno Gérard cujo tio protege e ambos gozam “à grande e à francesa” da situação vivida na mansão cheia de repuxos e frivolidades de gente rica.  
Depois, no ano em que Godard fez “Week End” (1967) Jacques Tati terminou um dos mais belos filmes da história do cinema: chama-se “Playtime”/Vida Moderna. Surpreendentemente, esta superprodução concebida em grande - até um aeroporto foi construído nos arredores de Paris - não teve o acolhimento necessário por parte do público e as receitas obtidas pela bilheteira não deram para cobrir os enormes investimentos efectuados. Resultado: o cineasta foi à falência.
Como foi possível semelhante desprezo diante desta obra-prima?  Alguns meses depois, em Lisboa (1) onde apresentou “Playtime” o célebre realizador traduziu numa frase todos os sentimentos de uma vida: ”Tudo o que sei, tudo o que tinha, tudo o que podia e tudo o que eu sonhava está em Playtime”/Vida Moderna.
Melhor filme europeu e medalha de prata no Festival de Cinema de Moscovo, “Playtime”/Vida Moderna é um filme cheio de humor, por vezes refinado e cáustico, onde cada plano e sequência chamam a atenção para um mundo ritualizado, cheio de tecnologia, mas incapaz de comunicar, estabelecer pontes para uma sociedade mais humanizada, igualitária e fraterna. É um filme notabilíssimo, daqueles que devem fazer parte de uma videoteca digna desse nome.
O “script” é conhecido: um grupo de turistas americanos resolveu fazer uma viagem de avião a Paris e quando aterram verificam estar perante uma paisagem urbana conhecida, o aeroporto é idêntico ao anterior (Roma) e até existem semelhanças com os candeeiros de Nova Iorque. Enquanto seguem todos juntinhos em fila indiana acompanhados por um zeloso guia tropeçam com o Sr. Hulot, sempre amável e disponível e a partir daqui sucedem-se “gags” únicos junto à torre Eifel, no Restaurante Royal Garden ou no hotel como a hilariante cena do funcionário à procura do quarto 442.
O ciclo organizado pela Leopardo Filmes e Medeia Filmes compreende ainda a exibição de mais dois registos de Tati: “Trafic” (1971) e “Parade” (1974). Ambos foram exibidos no circuito comercial, mas continuam pouco conhecidos da maioria do público.
Quanto às curtas-metragens, todas elas inéditas em Portugal (escritas ou interpretadas por Tati) a lista prevê a exibição de “Procura-se Brutamontes” (1934), de Charles Barrois;   “Domingo Animado” (1935) de Jacques Berr; “Cuida do teu Gancho”(1936), de René Cleement; “Aulas Nocturnas” (1967), de Nicoolas Ribowski; “Especialidade da Casa” (1976), de Sophie Tatischeff (filha e assistente de Tati) e “Força, Bastia” (1978) realizado conjuntamente entre pai e filha. Além dos filmes espera-se a exposição de  cartazes de cada um dos filmes de Tati, recriados por ilustradores portugueses, André Letria, Marta Monteiro, Madalena Matoso e  João Fazenda, entre outros.
Tati/Sr. Hulot será durante o mês de Setembro o centro de muitas atenções e os seus filmes têm muito do nosso imaginário cinéfilo, Chaplin/Charlot, claro está, mas também Buster Keaton/Pampelinas. Tati foi um visionário, esteve sempre à frente do seu tempo e por isso, os seus filmes embora realizados num contexto social, político e cultural distintos permanecem actuais no séc. XXI com uma frescura estética e cinematográfica incrível. Só as obras de arte resistem às modernices e ficam na História.

(1)          in Jornal A Capital, 15 de Março de 1968, entrevista conduzida por Jorge Silva Melo.

 




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