Os tascos com memória do Porto




Chama-se Roteiro dos Tascos do Porto o livro agora editado pela Afrontamento (*) e a obra tem uma relação afectiva com o autor desta crónica. Em primeiro lugar, foi escrito por um amigo, Raul Simões Pinto e as suas páginas ajudam a avivar memórias de um tempo que passou, mas também exaltam a cidade mais fraternal, humana e solidária que conheço no Mundo. Bairrismo? Talvez. Foi a cidade onde nasci, cresci e frequento todos os dias.
Depois, existe outra razão sentimental: residi perto de uma taberna com portas tipo far-west”, a antiga Adega Moura, à Rua de S. Dinis, ao Monte Pedral, perto do Cinema Vale Formoso, com grossos pipos encostados às paredes, presuntos e preciosos cartazes da República pendurados atrás do balcão. Em tempo de Ditadura aqueles “posters” com a fotografia de alguns vultos da Revolta do 31 de Janeiro fazem parte do meu imaginário e gosto pela História recente de um país resgatado pelo 25 de Abril.
Existe outra declaração de interesses a fazer antes das breves notas sobre a obra, precioso auxiliar para quem gosta de conhecer casas de tradição. Após o êxito do livro “As Tascas do Porto/Estórias e Memórias Servidas à Mesa da Cidade” (Edições Afrontamento) fui desafiado, em 2011, pelo autor a escrever o prefácio da 3ª edição da referida obra e logo a seguir, na companhia do autor deste livro e de outros historiadores das coisas portuenses (Hélder Pacheco e Germano Silva) contribui para o aparecimento do Grupo dos Amigos das Adegas e Tascos do Porto (Gaatp) cuja Direcção faço parte com gosto e prazer. Feito este preâmbulo vamos ao que interessa.
Em tempo de padronização de usos, costumes e gostos, este Roteiro é uma caixinha de surpresas e preciosidades. É um daqueles guias que valem a pena andar sempre à mão de semear. Razões: não só fornece um conjunto de informações sobre a localização das casas de bons comeres, dicas sobre como chegar e quais os meios de transportes públicos a utilizar (por aqui ninguém se perde) como também reproduz mapas, fotos, “tutti quanti” sobre os tascos da “cidade líquida”.
Dividido por zonas geográficas - Centro Histórico e Baixa do Porto/ Marginal/Ribeirinha/Caminhos do Romântico/Cidade Oriental -,  o guia enumera um conjunto de casas que importa (re) descobrir por parte de turistas e portuenses, como a Adega das Colunas, em S. Bento da Vitória, a Casa Costa, junto à torre dos Clérigos, o Retiro dos Carvalhos, nos  Lóios e a Adega O Leandro, na Rua de Trás, mais A Floresta, na artéria mais pequena do Porto, a Rua de Afonso Martins Alho e como não podia deixar de ser, a Adega “Alfredo Portista”, um monumento de fervor clubístico azul e branco situado na Rua do Cativo, junto à Sé.
Depois existem outras adegas de tradição como a Casa Louro, em Cimo de Vila (antigamente, os “tripeiros” não perdiam os saborosos petiscos e as malgas de vinho tinto) mais O Buraquinho dos Poveiros, a Tasquinha D´Ouro (conhecido pelo “Quim Bigodes”) a Adega Rio Douro (atenção: ainda se canta o fado às terças-feiras); mais a Casa Expresso, em Carlos Alberto (onde são servidas excelentes sandes de presunto de Baião) sem esquecer A Badalhoca, em Ramalde, O Túnel, em Serralves (onde o Gaatp teve oportunidade de homenagear o jornalista e historiador Germano Silva), a Casa Felisberto e o “Buraquinho do Freixo”, ambos em Campanhã, a freguesia mais esquecida do Porto.
Existem mais tascos a visitar neste livro de bolso (editado em inglês, francês e espanhol) mas o melhor será consultar as suas páginas  e seguir as rotas indicadas, sugestões e preços praticados. Até as coordenadas GPS dos sítios e lugares de comes e bebes vêm descritas não vá o turista acidental perder-se no caminho. Mas o Porto, todos sabemos, “não é bem uma cidade, antes, uma aldeia em ponto pequeno” e como tal, ainda é possível encontrar o lugar para saborear o bolinho de bacalhau e beber o copo de tinto a troco de “cinco réis de mel coado”.
Como é bom de ver, alguns destes espaços fazem parte do património da cidade. Não só perpetuam o décor, atmosferas e  histórias, como testemunham memórias do Porto desaparecido, sobretudo, na segunda metade do séc. XX, onde existiam centenas de unidades industriais espalhadas pelas freguesias, homens e mulheres de bicicleta a circular pelas ruas a caminho das fábricas,  ilhas insalubres sem água e luz, gente humilde a confraternizar nos tascos, talvez o escape possível para “dar de beber à dor” e esquecer o dia seguinte.
Em 2005 existiam cerca de uma centena de tascos e dez anos depois, restam metade. Razões: a cidade sofreu uma enorme metamorfose urbana e paisagística, deixou de ser a “cidade do trabalho”, depois transformou-se no “Porto comercial” e desde há vários anos transborda de turistas, hostels em cadeia, restaurantes, lojas e hotéis, prémios e distinções em catadupa (melhor destino europeu em 2012 e 2014) artigos nas grandes revistas de viagens e lazer, reportagem no Financial Times. Os preços baratos da Ryanair, mais a aposta turística feita ao longo dos  anos por diferentes organismos institucionais (públicos e privados) e, em especial, pela Câmara Municipal do Porto contribuíram para virar a cidade ao avesso e transformaram o Porto num destino de eleição e apetecido por milhões de turistas de todo o Mundo.
Feita a apresentação fica a recomendação: antes que o antigo tasco de tradição seja encerrado e transformado numa “tasca gourmet”, venha a sande de presunto e o copo de tinto para a mesa do canto.

(*) A Afrontamento existe no Porto desde 1963 e continua a ser uma das poucas editoras independentes dignas desse nome. O produtivo catálogo abrange obras diversas no domínio das Ciências Sociais e Humanas, mas também, na ficção, poesia, arte e literatura infantil. É uma editora de causas. O seu combate por uma sociedade mais livre e culta vem muito antes da Revolução do 25 de Abril. Através das sua edições pude ler importantes reflexões sobre os antigos movimentos de libertação, PAIGC, MPLA e Frelimo, com particular destaque para os ensaios de Amílcar Cabral e Agostinho Neto, mas também muita poesia de Pablo Neruda, textos do padre Mário de Oliveira, obras sobre o Movimento  Operário Português (sob coordenação do historiador César Oliveira)  livros de Armando Castro, Francisco Pereira de Moura, Lindley Cintra, João Martins Pereira, Maria de Lurdes Pintassilgo, um rol de autores e investigadores reconhecidos pelo país e estrangeiro. O editor José Sousa Ribeiro é o responsável por levar a bom porto os destinos da Afrontamento e ontem como hoje, a pequena editora continua a afrontar outros modelos e interesses.
Em jeito de homenagem, não posso deixar de prestar uma singelo tributo a três pessoas que conheci e com grandes responsabilidades editorais na Afrontamento: o sociólogo Arnaldo Fleming, a editora Marcela Torres e o historiador César Oliveira. Tive o privilégio de os conhecer no MES (em 1974) de boa memória e com eles partilhei sonhos e aventuras.
 



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