Turim, cidade de “glamour” e encanto



Antes de partir para Turim, um amigo meu exclamou: “Turim não tem nada de especial para ver. Mais do que dois dias é uma eternidade. Nem rede de metro existe!”. Não levei muito à letra a afirmação. Em vez de dois dias, estive um mês a cirandar pela cidade e a descobrir a bela região de Piamonte. No final, senti-me “molto felice” pela experiência.

Como tinha feito algum trabalho de casa descobri que, nos dias seguintes à minha chegada, a famosa companhia Béjart Ballet Lausane, fundada por Maurice Béjart, fazia parte da temporada lírica do Teatro Regio Torino. Nem queria acreditar. Para mais, no imperdível programa constavam as coreografias com música de Vivaldi (“Light”) e Ravel (“Bolero”). Comecei logo a ganhar pontos. A companhia tinha aterrado em Turim depois de uma longa digressão à China e confesso ter ficado ansioso, já que a procura de bilhetes é enorme e as sessões esgotam rapidamente. Antes da partida ainda tentei comprar os ingressos através da Internet, mas as minhas previsões confirmaram-se. Já não havia bilhetes para ninguém. Porém, como Deus é grande, não desisti e através de um amigo meu italiano tudo se resolveu. No dia combinado lá fomos ao faustoso teatro situado na Piazza Castello, antiga residência da Casa de Saboia e cuja fachada foi classificada como Património da Humanidade, pela Unesco.  
Foi uma noite mágica. Gostei tanto do maravilhoso bailado e das coreografias que, dois dias depois, voltei a rondar a bilheteira para repetir a dose. E, uma vez mais, fui bem sucedido. E não resisti contar ao meu amigo um episódio antigo vivido em Portugal durante ditadura de Salazar. Béjart, dançarino e coreógrafo de renome mundial, esteve no dia 6 de Junho de 1968 em Lisboa, a convite da FCG, para apresentar o bailado Romeu e Julieta, e após o espectáculo subiu ao palco para anunciar o assassinato de Robert Kennedy. A PIDE não lhe perdoou a ousadia. Nessa mesma noite foi ao Hotel Borges, no Chiado, e abandonou-o de madrugada na fronteira de Espanha. Béjart voltou a Portugal em 1974 (precisamente com o mesmo espectáculo) e em 1998 foi condecorado pelo presidente da República, Jorge Sampaio. Incredibile. Con l'Italia di Mussolini è successo lo stesso”, respondeu o meu amigo Giorgio Merlone, advogado, figura influente da cidade de Turim. Histórias à parte, a companhia Béjart Balet Lausanne foi um sucesso artístico e, no final, o público presenteou a famosa companhia com uma estrondosa ovação aos bailarinos, músicos e ao director da orquestra, Nicolas Brochot.
Os meus primeiros dias de estadia em Turim estavam ganhos, mas não descansei enquanto não descobri numa das muitas lojas de música clássica a conhecida “La Senna Festigiante”, de Vivaldi, na qual está incluída uma das peças coreografadas pela companhia de Béjart.

As lanternas mágicas na Mole Antonelliana

Embalado pelo encanto e pelas descobertas que ia fazendo, ao terceiro dia já circulava de bicicleta pela Via Roma, uma das artérias mais movimentadas e repletas de lojas chiques de Turim e que liga a estação de comboios Porta Nuova à Piazza Castelo, onde está o Palazzo Madama. Através do mapa da cidade, ia espreitando ruas e avenidas, entrando em edifícios com história, parando ali e acolá para visitar museus e palácios. E nas muitas igrejas de Turim aproveitava para descansar e admirar muita arte sacra de diferentes períodos, autores e estilos.
Na primeira semana já tinha visitado por diversas vezes a Mole Antonelliana, símbolo da unidade italiana, cuja estrutura equivalente à torre Eifel de Paris, constitui uma das vistas panorâmicas mais bonitas de Turim e onde, para meu deleite, funciona o Museu do Cinema (projetado com o apoio do cineasta inglês Peter Greenway). É um local obrigatório de visita, mais ainda quando por sorte tenho a oportunidade de admirar uma notável exposição sobre Fritz Lang e o expressionismo alemão, rever alguns filmes dessa época, mais uns quantos títulos do cinema neo-realista italiano do pós-guerra e uma fabulosa colecção de lanternas mágicas, máquinas de projectar, cartazes de cinema, adereços, cenários e fotos de filmes italianos, muitas vitrinas com peças de estimação. Até o cachecol e o famoso boné de Federico Fellini são exibidos à curiosidade pública.
Tenho todo o tempo do mundo, mas Turim tem um vastíssimo património artístico e arquitectónico a visitar, cerca de 20 palácios, alguns dos quais foram residências de príncipes, duques e membros da realeza dos Sabóia e hoje abertos à fruição cultural. Viajar pelo interior deles será, com toda a certeza, um exercício duríssimo, mas fiquemo-nos pelo Palácio Real de Turim, considerado a jóia da coroa; mais a Villa Della Regina, o preferido das rainhas; o Palazzo Madama, de fachada barroca e transformado no Museu Cívico de Arte Antiga com tesouros artísticos  que vão desde  o período grego-romano até ao séc. XIX e onde, por vezes, os seus espaços dão lugar a instalações e outras manifestações de arte contemporânea; o Palazzo Carignano, antiga sede  do primeiro parlamento italiano e hoje sede do Museu Nacional do Risorgimento, um edifício cheio de significado político, pois perpetua a história e o movimento de unificação do país e da pátria italiana; o Castelo de Valentino, um local aprazível e delicioso localizado nas margens do rio Pó (que atravessa Turim) e onde pedalava sempre com imenso gozo e prazer.

Fausto e riqueza em Stupinigi

Nos arredores da cidade, o deslumbramento volta sentir-se quando entro no Palácio de Stupinigi, local de eleição da família Sabóia, símbolo de ostentação e riqueza a fazer lembrar Versailles, palco de grandes jantares e bailes com luxuriantes jardins e lugar de caçadas. Tudo é grandioso neste palácio considerado uma obra-prima do italiano Filipo Juvarra, o arquitecto preferido da corte e cujo traço se confunde com a maior parte dos edifícios da cidade construídos entre os séc. XVII e XVIII; ou num outro dia vou ao Castello Rivoli cujas instalações acolhem várias exposições de  fotografia, pintura, escultura, loja com livros de perder a cabeça, reproduções de arte italiana, “tutti quanti”.
Neste roteiro necessariamente lacunar não posso deixar de referir o Museu do Automóvel, riquíssima viagem automóvel desde a pré-história até aos nossos dias e onde a par dos modernos bólides de corrida da F1 encontro relíquias de encantar como o carro do famosíssimo Fangio que, recorde-se, correu em Portugal; ou conhecer o Palazzo della Academia delle Scienze, ocupado pelo Museo Egipcio, considerado “um dos maiores do Mundo”, sem esquecer a Galleria Sabauda, onde existem fabulosas colecções de pintura de mestres italianos, flamengos e holandeses (por lá estão, entre outras preciosidades, “O Velho Adormecido”, de Rembrant, mais uma colecção de retratos de Van Dyck); ou a catedral de Superga, situada num monte a leste da cidade e de onde lá do alto se observa Turim.
Além da religiosidade histórica do lugar, sou tentado a avivar memórias de um pormenor pouco conhecido. Na tarde do dia 3 de Maio de 1949, e devido ao forte nevoeiro que pairava na região, um avião proveniente de Lisboa com a equipa de futebol da Juventus embateu contra o muro da basílica e despenhou-se. Morreram todos os seus ocupantes. A cidade ficou em choque e os jornais da época relatam que Turim parou literalmente para acompanhar o cortejo fúnebre.

Canaletto na Pinacoteca Agnelli

O meu roteiro de edifícios com história e imperdíveis numa visita a Turim está quase a terminar, mas tenho de referir obrigatoriamente a Pinacoteca Giovanni e Marela Agnelli, mesmo muito próximo da estação do metro de Lingotto, sede das antigas instalações da FIAT e onde na estrutura projectada pelo conhecido arquitecto Renzo Piano, estão quadros valiosíssimos de pintores venezianos, Bellotto, Antonio Canal (Canaletto) Antonio Canova, mas também, Manet, Modigliani, Picasso, Renoir e Matisse, entre muitos outros nomes da pintura do séc. XX.
Como disse atrás, na cidade onde viveu o primeiro rei de Itália, Vítor Emanuel II, viajei por muitos sítios e lugares de encantar. Estive na Porta Palazzo, onde semanalmente se realiza uma das maiores feiras ambulantes ao ar livre do Mundo, entrei em cafés com história (como, por exemplo, o Fiorio com gelados e crepes de perder a cabeça) fartei-me de comer pizzas confeccionadas de muitas maneiras e numa tarde de frio seco sentei-me a ler os roteiros turísticos de Turim. Têm muitas fotografias e dados sobre monumentos, igrejas, catedrais, lembram os feitos de reis e rainhas e o passado da família de Sabóia, mas nem uma linha sobre o Museo Diffuso della Resistenza della Deportazione della Guerra de Diriti e della Libertà, situado junto à Estação de Porta Susa.

Memórias da Resistência
Foi mais uma surpresa. O Museo ocupa uma parte do enorme palácio construído sob o risco do arquitecto Filippo Juvarra, antiga sede do Quartel Militar e nas suas instalações o visitante encontra uma série infindável de testemunhos impressionantes dos horrores cometidos durante a ocupação nazi em Itália e em Turim. Nem foi preciso descer aos infernos, 12 metros de profundidade e percorrer o corredor estreito que serviu de refúgio a milhares de pessoas que fugiam dos bombardeamentos, destruição e morte. Através da aparelhagem bastou ouvir o sons das bombas para imaginar os horrores de gente desesperada e sentir esta barbárie na Europa. Depois, existem diversos monitores com informação digitalizada e milhares de fotos, jornais, relatos de entrevistas, mapas e muita documentação que ajudam a contextualizar um dos períodos mais sangrentos da História contemporânea. A tragédia da Itália de Mussolini conta-se neste local de grande simbolismo, estudo e conhecimento sobre a Resistência e combate ao Fascismo.
Ao escrever sobre Turim não posso deixar de acrescentar um facto histórico de maior relevo para o Porto, pois foi nesta cidade sempre amante da Liberdade e hospitaleira que o rei da Sardenha e príncipe da região de Piamonte, escolheu a Invicta como lugar de exílio após ter sido destronado em 1849. A Praça de Carlos Alberto não só faz parte da toponímica portuense, como simboliza a passagem de um rei que aqui viveu até morrer e cujo legado patrimonial poderá ser admirado no Museu Romântico, à Quinta da Macieirinha.

A subida ao Monte Branco

Além dos concertos, das visitas a museus e palácios, tive tempo para quase tudo. Entrei nas lojas de coisas antigas, saboreei a famosa gastronomia, queijos, enchidos e vinhos da região, e numa manhã de frio e algum sol à mistura viajei até aos alpes transalpinos para subir ao Monte Branco, cerca de 3500 metros de altitude e um objectivo bem assente: apenas admirar lá do alto a paisagem pintada de branco e ver os milhares de esquiadores, famílias e amigos, jovens e crianças a praticarem o seu desporto de eleição. Uma alegria, uma festa idêntica a quem vai admirar um jogo num estádio de futebol. Devo ter sido o único turista a subir longe de mais apenas e só para ver os outros esquiar…https://ssl.gstatic.com/ui/v1/icons/mail/images/cleardot.gif
Resta dizer que Turim é uma cidade plana, bem desenhada do ponto de vista urbanístico, servida por uma boa rede de transportes públicos, autocarros, eléctricos, bicicletas de aluguer em diferentes locais do centro, uma linha de metropolitano a funcionar totalmente automática (a festejar 10 anos de existência) e diariamente utilizada por milhares de passageiros e turistas do mundo inteiro. Quem disse que a antiga capital de Itália não tinha nada para ver enganou-se ou nunca esteve na cidade detentora de um vasto conjunto de palácios recuperados e classificados pela Unesco como Património da Humanidade, museus, igrejas, catedrais, universidades, pólos de ciência e tecnologia, galerias de arte, cafés e livrarias, gastronomia rica e variada. E um povo afável e comunicativo, seguramente o maior património de uma cidade  bela e encantadora.





Comentários

  1. Adorei o seu artigo sobre Turim. Faz anos que lá estive mas, jamais esqueci a sua beleza arquitectónica e o doce encanto das suas gentes! Obrigado por me fazer recordar uma antiga jornada pela cidade do "FIAT", do qual fui fã! Grande abraço. Gil Regueiro

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