“Gostava de voltar a organizar o Intercéltico no Porto”


Avelino Tavares, fundador da Mundo da Canção conviveu com os grandes nomes da “chanson” e da música francesa. E orgulha-se da sua revista de estimação ter divulgado grandes artistas do século XX, Serrat, Patxi Andion, Amancio Prada, José Afonso, Adriano Correia de Oliveira, Vitorino, Sérgio Godinho, Luís Cília, uma paleta infindável de intérpretes e músicos do Mundo, muitos deles figuras lendárias da pop e do rock, Lou Reed, pois claro, a par de Carol King, Dylan, Cohen, Pete Seeger, Woody Guthrie, Baez, Jimi Hendrix, Cat Stevens, Judy Collins…Naqueles tempos, anos 70 só a Mundo da Canção publicava textos, entrevistas e críticas verdadeiramente importantes sobre a vida e obra do panorama musical. “Desde a primeira hora tive colaboradores excepcionais, como a Maria Teresa Horta, José Viale Moutinho, Jorge Cordeiro, Jorge Lima Barreto. Até o cantor do Uruguai Daniel Viglietti entrevistou Chico Buarque. Todos eles escreveram sempre por amor e prazer. Foram tempos heróicos”, diz Avelino Tavares, editor, produtor, responsável por centenas de eventos e concertos musicais levados a efeito em diferentes pontos do país. Há dias, a Sociedade Portuguesa de Autores, atribuiu-lhe um prémio como forma de reconhecimento pelo trabalho efectuado na “promoção dos valores culturais e da cidadania em Portugal”. O Porto24 foi saber como respira o inspirador do Intercéltico do Porto. “Ainda não desisti de retomar o projecto. Ainda não perdi a capacidade de sonhar”.



Porto24 – Um ano após os acontecimentos de Maio 68 em França, aparece no Porto a revista Mundo da Canção. Foi uma “pedrada no charco” no panorama cultural e musical, talvez um gesto atrevido para a época, um país em Ditadura e vigiado pela Censura. Qual foi a ideia (luminosa) deste projecto?
Avelino Tavares – Sempre gostei e senti a música desde criança. Em casa dos meus tios-avós ouvia-se muita música clássica através de uma grafonola. Foram tempos memoráveis. Depois, muito mais tarde, ao regressar de França fui convidado para integrar uma tipografia e com o aparecimento em 1969 do Zip-Zip [inesquecível programa da RTP, com Raul Solnado, Fialho Gouveia e Carlos Cruz) pensei em editar uma revista [Mundo da Canção] diferente, onde pudesse dar à estampa os cantores, compositores e músicas mais importantes dessa época. Foram tempos empolgantes e maravilhosos.
E onde a par de José Afonso, Luís Cília, Adriano Correia de Oliveira, a MC divulgou os grandes cantores da “chanson”, Brel, Brassens, Moustaki, Collete Magny e Juliette Grecco, entre tantos outros da cena musical mundial. Recordo-me que a revista esgotava rapidamente. Como explicas este fenómeno?
Não podemos esquecer que Portugal vivia “orgulhosamente só” e tudo era proibido. A revista teve um êxito incrível e chegou a vender-se, por edição, mais de 40 mil exemplares. Na época foi considerado um feito histórico e rapidamente alcançou um prestígio editorial enorme. Curiosamente, já nesta altura, a publicação alcançou mais aceitação a Norte do que a Sul. Alguns editores diziam-me que ia ser um flop. Enganaram-se redondamente. A MC influenciou diversas gerações e despertou a consciência de muitos jovens para a música dos anos 70.
Mas existia censura e os textos tinham de ser previamente vistos pelos “coronéis do lápis azul”. Como foi a coabitação com os censores do fascismo?
-Muito simples: até ao número 33 nunca levei nenhum exemplar à Comissão Prévia de Censura. Porém, quando estava nas instalações da empresa [Tipografia Aliança] a ultimar o nº 34 da revista, a PIDE entrou nas instalações e confiscou toda a edição. Foi um choque enorme provocando avultados prejuízos económicos e financeiros. Perdemos imenso dinheiro em publicidade e vendas. Na altura, cerca de 70 por cento da revista foi roubada pelos agentes da PIDE. Uma canalhice sem perdão.
Porém, a MC voltou a ser editada e resistiu…
-A revista foi sempre assumida como um acto de resistência cívica e cultural e continuou a ser publicada até Julho de 1985. E acabou devido a vários factores: em primeiro lugar porque, finalmente, o país vivia em Liberdade e em Democracia conquistada em 25 de Abril de 1974. Depois, com o aparecimento de outras publicações musicais, jornais e revistas, a MC foi perdendo quota de mercado. Mas cumpriu o seu papel histórico e este facto deixa-me naturalmente orgulhoso.
A tua vida está intimamente ligada à música. Foi só a influência dos teus tios-avós e da célebre grafonola onde escutavas música clássica?
– Como disse anteriormente fui muito cedo para França [Poitiers] e por lá adquiri bastantes conhecimentos em termos de formação e estética musical. Assisti e participei nos grandes concertos da “chanson” e privei de perto com Brel, Ferré, Collete Magny. Depois, a par de editor da revista fui produtor e organizador de grandes eventos de cariz internacional, o Intercéltico, mais o Festival de Jazz no Porto, a par de uma série de eventos musicais espalhados pelo país. Nunca tive tristezas na música, só alegrias. Nunca tive a falta de um músico nos concertos enquanto produtor e realizador. Olhando para trás fui sempre um homem feliz.
Nos tempos de Rui Rio [ex-presidente da Câmara Municipal do Porto] o Intercéltico não foi realizado e muita gente ainda hoje lamenta o seu cancelamento. Foram só motivos financeiros?
-A personagem que dirigiu a cidade durante 12 longos anos era uma espécie de eucalipto: secava tudo à sua volta, tinha horrores à Cultura e aos agentes culturais da cidade. O Festival só não se realizou devido à falta de apoio camarário, cerca de 5 mil euros. Uma bagatela. Para quem perdeu a memória, o Festival atraia milhares de pessoas ao Rivoli e os concertos estavam sempre esgotados. Não tenho dúvidas em afirmar que foi uma grande perda para a cidade e para a cultura.
Mudaram-se os tempos e a cidade tem outro executivo. Mudaram-se as vontades?
Já fiz alguns contactos, elaborei um projecto e ando há dois anos e meio a tentar junto da câmara e do pelouro da Cultura retomar o Intercéltico e o Festival de Jazz do Porto. Ainda quero acreditar que estes dois projectos são uma mais-valia para a cidade. Ainda não tive uma resposta efectiva dos poderes públicos, mas não perdi a capacidade de sonhar…
Curiosamente, uma instituição sediada em Lisboa, SPA-Sociedade Portuguesa de Autores decidiu atribuir o prémio como “forma de reconhecimento pelo contributo da MC para a promoção dos valores culturais e da cidadania em Portugal”. Como interpretas este galardão da SPA? Reconhecimento público do teu longo trabalho?
Penso que sim, mas devo acrescentar o seguinte: ao longo de 46 anos de vida da MC nenhuma instituição pública ou organismo oficial se lembrou da nossa existência e do labor em prol da cultura. Pela primeira vez, a SPA reconheceu a nossa existência e premiou não só uma editora do Porto que, recordo, foi muito mais do que uma simples revista, antes corporizou um projecto cultural. Naturalmente, estou muito grato à SPA e este prémio obriga-nos a fazer mais e melhor. Gostava que este galardão tivesse, pelo menos, o condão de alertar consciências adormecidas.
O que falta fazer?
Voltar a organizar o Intercéltico e o Festival de Jazz no Porto. Não tenho dúvidas que existe público para estes dois eventos e caso as nossas propostas sejam aceites será o retomar de um projecto muito gratificante para a cidade em termos culturais e artísticos.

Comentários