O último adeus à Adega S. Martinho


Emoção, muita emoção e algumas lágrimas marcaram o último dia (sexta-feira, 12) da Adega de S. Martinho, à Rua de D. João IV, no Porto, para muitos a segunda casa, local de encontro de amigos, cumplicidades à mesa feita entre dois dedos de conversa e copos de vinho.
O fim estava anunciado e traçado há vários meses: o prédio será demolido para dar lugar a um hotel, mais um entre muitos outros que surgem como cogumelos para dar resposta ao apetecido mercado imobiliário. O tasco antigo morreu. Ficam as memórias na cidade cheia de turistas.
“O que está acontecer deixa-me muito triste. Todos os dias vinha cá jogar às cartas e beber um copo. Vou deixar de estar com quem mais gosto e sentar-me no meu cantinho. Fico mais pobre”, diz Serafim Ferreira, um dos rostos familiares deste espaço de afectos e recordações, quase 50 anos de portas abertas (azuis e à “far-west” como manda a tradição) fotos antigas do sempre “glorioso” Futebol Clube do Porto, balcão com sandes de presunto, bolinhos de bacalhau, queijo, salpicão.DSC_0242
Américo Fernandes, 71 anos é um dos fregueses mais antigos e está conformado com o fecho do tasco: “Vim cá muitas vezes ao longo dos anos. Umas vezes para jogar à sueca, outras para conviver e beber um copo. Esta casa fazia parte de mim”, confessa. Como será o futuro? “Vamos seguir em frente e arranjar outras formas de convívio. A vida continua”.
São 5 da tarde e só restam alguns garrafões de vinho para os últimos clientes. Enquanto uns brindam e outros tiram fotos, Teresa Teixeira, a dona Teresinha está inconsolável. Quando um freguês chega ao balcão para as despedidas não consegue disfarçar a emoção: “Eu queria ficar cá mais uns anitos, mas não foi possível. A pressão foi muita. Eu sabia que, mais dia menos dia, este fim tinha de acontecer”, recordou.
A ansiedade começa a subir de tom à medida que se aproxima a assinatura dos últimos papéis (e do cheque) com os futuros donos do prédio. “Devem chegar cá por volta das 7 horas. Espero que tudo esteja em ordem”, diz. E como o segredo é a alma do negócio, escusa-se a revelar números sobre o valor do negócio e indemnização. “Agora vou ter tempo para gozar a vida”.
E como o futuro já começou, o Grupo dos Amigos das Adegas e Tascos do Porto (Gaatp) que, há três anos foi formado na cidade, justamente para lembrar a importância destas casas de tradição, efectuou diligências com vista a acautelar algumas peças e materiais que, quase meio século, fizeram parte do décor da conhecida adega classificada como estabelecimento de tradição devido à sua autenticidade. Objectivo: criar um espaço museológico onde seja possível preservar e dar a conhecer aos portuenses e a quem nos visita a memória dos antigos tascos da Invicta.
Assim, com a preciosa colaboração da Junta de Freguesia do Bonfim (que disponibilizou uma equipa de funcionários) foi possível desmontar e guardar uma parte do balcão com mármore (onde eram feitas as contas dos copos de vinho e cervejas consumidas pelos clientes…) mais a caixa dos 20 amigos, as portas e as mesas, alguns bancos, o reclame luminoso situado no exterior do edifício, entre outros objectos de valor afectivo.DSC_0249 (1)
“A cidade ficará a ganhar se estas memórias não forem destruídas. A Câmara do Porto terá um papel importante no apoio e dinamização deste projecto. Uma boa parte da história do Porto foi vivida e sentida pelo povo mais pobre da cidade, designadamente, operários, pescadores e alguns trabalhadores rurais nas adegas e tascos da cidade. Como tal, faz todo o sentido a existência de um espaço dedicado às tabernas do Porto, entre as quais, a Adega S. Martinho, a mais típica e característica da cidade”, sublinhou Hélder Pacheco, escritor e historiador das coisas do Porto, cujo livro a publicar este ano será o resultado de uma longa investigação sobre os tascos ao longo dos últimos séculos. “O livro será um contributo importante para melhor se perceber o fenómeno das tabernas e o processo da sua transformação e extinção”, concluiu.
Na hora das despedidas, Manuel Pizarro, vereador da Habitação e Acção Social da Câmara Municipal do Porto, também foi à Adega S. Martinho dar uma palavra de ânimo à dona Teresinha e prometeu ajudar o Gaatp no projecto destinado à salvaguarda do património dos tascos portuenses. Se tal acontecer nem tudo está perdido numa cidade em constante mutação urbana, destino turístico de milhões de visitantes, mas cuja singularidade (e identidade) deverá ser mantida e preservada.



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