Escola de nobreza com futuro incerto



Ao longo da sua história o “Infante D. Henrique” conquistou enorme prestígio e formou várias gerações de estudantes do ensino técnico e profissional. Hoje, é uma caricatura desse passado glorioso. Antigas oficinas e salas de aula podem ser visitadas no decorrer do Open House Porto, entre 30 de Junho e 1 de Julho. Ao todo são 65 espaços seleccionados entre o Porto, Gaia e Matosinhos. O foco da 4ª edição está virado para as "arquitecturas de utilização industrial".


Manuel Vitorino
Jornalista





Só retenho boas memórias e aprendizagens para a vida na antiga e prestigiada Escola Industrial Infante D. Henrique, aulas estimulantes, um curso de nobreza (Serralharia, sim o mesmo de José Saramago, o nosso único Nobel da Literatura) mais os professores, autênticos catedráticos na arte de bem ensinar, mestres de grandes ofícios, entre os quais, retenho alguns pedagogos de eleição: Pedro Homem de Melo, Garcia Alves, Lino António.
O primeiro, nunca foi um professor qualquer, antes um aristocrata da palavra, um visionário na transmissão de saberes sobre Etnografia e Folclore, a sua paixão de sempre, mais a poesia e o fado, com Amália para tema de conversa, a grande diva imortalizada nos versos do poeta. As suas aulas viajavam sempre à volta da prosa poética, tal e qual como a sua vida. Um privilégio, muitos anos depois reactivado no seu Convento de Cabanas, em Afife, no Alto Minho.


 

O saudoso professor Garcia Alves fazia parte de outra linhagem, enorme áurea, sabedoria e sobriedade no trato. Não admira, pois, que perante tais atributos tenha granjeado enorme respeito pelos alunos, colegas e comunidade escolar. Foi sempre um pedagogo no sentido mais nobre do termo, um homem de grande honradez e sentido cívico. Como por milagre, as suas aulas de Matemática transformavam-se num prazer para a maioria dos alunos. Para mim, uma descoberta.
Antes de dizer adeus à vida, testemunhei a sua preocupação na recolha e preservação do património escolar. Sonhou com a existência de um núcleo museológico da Escola, nunca como repositório de velharias, antes instrumento de aprendizagem para as gerações mais novas. Para ele o passado só importava estudar com vista ao futuro.
O professor Lino António ensinou-me a gostar do Desenho e das artes visuais, mais o conhecimento dos grandes mestres da modernidade, desenho, escultura, uma simbiose apenas acessível a quem sabe ensinar, transmitir sabedoria e cultura. As suas aulas foram sempre autênticas viagens pelos museus, pintura, património artístico e patrimonial. Um colosso. Volvidos muitos anos revejo a sua postura como um professor único, preocupado e sempre disponível para ajudar os alunos. A sua forma de estar no ensino nunca foi um modo de vida, antes uma espécie de sacerdócio, transmissão de saberes para a vida.








Porém, tudo isso aconteceu num tempo e numa época onde a partilha da cumplicidade, amizade e respeito faziam parte da nossa cartilha afectiva. Um exemplo: quando as aulas terminavam ao final da noite, às 23, 20 horas, o professor Lino António não desligava a corrente, antes esperava por alguns alunos da turma e oferecia boleia até nossas casas no seu velho Ford Anglia (1962) muitos anos depois usado nos filmes da saga Harry Potter. Um mimo.Como será possível esquecer tal dádiva?

Estou em 1971 e, por instantes, faço um “flash-back” com a memória. Lembro-me do jornal “O Infante” (onde escrevi um curto apontamento sobre o grande Alves Redol) e tal como os jovens da minha geração, vou vivendo debaixo do pesadelo da guerra colonial. A guerra de África está para lavar e durar; na RTP retenho mensagens de soldados em vésperas de Natal, pais, mulheres, esposas e noivas a acenar aos soldados. E, muitas lágrimas no cais de todas as despedias.
A Ditadura de Salazar e, após Caetano, continuam a mergulhar o país numa crise sem precedentes, liberdades vigiadas, aumento da repressão política. Naquele tempo, a ousadia de fazer greve ou lutar contra a guerra terminava na prisão. Fatal como o destino. A Escola é o reflexo da sociedade.
E, no entanto, no meio desta encruzilhada social, cultural e política, o “Infante”, a grande escola de mil saberes, lá continua a formar gerações de grandes profissionais, serralheiros, electricistas, auxiliares de laboratório químico, um “must” para a época, tecelões, carpinteiros e outros ofícios em vias de extinção.
Recordo o JN, mais a secção de Anúncios de Emprego onde, todos os dias, milhares de pessoas folheavam as suas páginas em busca de trabalho. Muitos deles, traziam um parágrafo que fazia toda a diferença: “de preferência com o curso da EIIDH”. Tudo isso aconteceu numa época marcada pela expansão empresarial, fábricas, oficinas de reparações automóvel, carpintarias, empresas da indústria têxtil e ofícios correlativos.
A cidade industrial acordava ao som das sirenes das grandes fábricas e as ruas transformavam-se num formigueiro de operários e operárias pedalando de bicicleta até às unidades fabris. O tecido empresarial dava mostras de dinamismo e a Escola Industrial Infante D. Henrique contribuiu, decisivamente, para a formação de operários especializados, muitos deles quadros superiores de grandes empresas e unidades industriais do Porto e da região Norte.
Falei de memórias boas. Mas, o futuro do “Infante” é muito preocupante. A redução de alunos inscritos é um pesadelo há muito tempo,  mais ainda, nos últimos 20 anos. A sangria de alunos repete-se ciclicamente perante a indiferença dos sucessivos governos, ministros da Educação, organismos oficiais. São demasiados silêncios para uma Escola só cercada por inúmeros problemas sem resposta. Existem demasiados mistérios por esclarecer.
A estatística traduz um quadro negro: em 2010, estavam inscritos cerca de 900 estudantes; em 2018, apenas 60, duas ou três turmas para uma escola gigante, perdida no meio de uma cidade dantes industrial, depois comercial e agora rendida ao turismo.



“O mundo mudou”, repetem os burocratas quando evitam tomar decisões inadiáveis. Para o futuro, ficará uma pergunta pertinente: como poderá um país viver tranquilo quando assiste ao definhar de uma escola de enorme craveira técnica e profissional? E quais as razões que traduzem a crónica falta de alunos?
Por estes dias percorri os  corredores do edifício e observei marcas de abandono, incúria, desprezo, obras por fazer, remendos em alguns tectos provocados pelas infiltrações da chuva, oficinas fechadas a sete chaves, a maior parte das salas de aula vazias, o bar quase sem estudantes, uma biblioteca com poucos leitores. O ruído deu lugar ao silêncio.
No meio da desolação (ou tristeza?) encontro nas redes sociais (abençoado Facebook) uma série de fotos admiráveis da fotógrafa Teresa Teixeira, o mais completo levantamento fotográfico efectuado até agora à volta das instalações, um registo de enorme valor documental e artístico. E volto a viajar no tempo, a contemplar espaços familiares, as oficinas de carpintaria, serralharia, mecânica, laboratórios, salas de desenho, mais a biblioteca onde li pela primeira vez alguns clássicos obrigatórios, Camilo e Eça, mais "Os Pescadores", de Raul Brandão, uma preciosidade sem preço.


Mais do que um guia digital, a lente de Teresa Teixeira conseguiu captar pormenores únicos de um estabelecimento de ensino técnico/ profissional, objectos, máquinas, salas de aula, oficinas com relíquias da arqueologia industrial, peças e testemunhos do Porto antigo, uma multiplicidade de coisas apenas existentes numa escola centenária. Para a história ficará marcado o esforço e dedicação da artista, mais o registo de um edifício com muitas memórias dentro. Não serve de consolo. Mas atenua mágoas e revoltas.


Fotos: Teresa Teixeira

 Porto, Junho de 2018 
 O autor não segue as recomendações do AO


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