“Filhos do vento” desvenda histórias de ex-militares da guerra colonial


O livro “Furriel não é nome de Pai”, de Catarina Gomes e exposição do fotojornalista Manuel Roberto fazem parte do projecto. Mostra está patente no Mira/Artes Performativas.



Por Manuel Vitorino
Jornalista

São 29 fotografias com rostos de África e paisagens áridas, um mundo à parte dos estereótipos habituais. As imagens carregam emoções e trazem à superfície histórias de ex-militares vividas nas antigas colónias de África. Em todas elas estão sentimentos de gente angustiada e perguntas sem resposta. Onde está o meu pai gerado em tempo de guerra? Como posso completar a identidade e resgatar a dignidade perdida? A exposição (belíssima) intitulada “Filhos do Vento” do fotojornalista Manuel Roberto levanta alguma luz sobre um tema ainda tabu pelos ex-combatentes. Na sessão de abertura, no Mira/Artes Performativas, foi ainda lançado um livro (único) intitulado “Furriel não é nome de Pai”, de Catarina Gomes. 

São imagens e textos unidos por uma cartografia comum, vivências num país sobressaltado, lá longe na pátria de Cabral, onde muitos clamam pelo pai quando o militar terminou a “comissão de serviço” e regressou à “Metrópole”. O rasto afectivo perdeu-se. Ficaram as memórias contadas na primeira pessoa do singular, histórias silenciosas deixadas na penumbra do tempo, muitas delas amarelecidas e desconhecidas por uma boa parte da sociedade portuguesa.
“Só quero conhecer o meu pai. Se já tiver morrido quero conhecer os meus irmãos”, reclama Califa Tcham, guineense, “a filha do capitão” como é conhecida na aldeia onde nasceu e cresceu. Na tabanca onde desaguam os sonhos de menina e moça o olhar não disfarça a tristeza. Só a câmara de um fotojornalista sensível consegue ler a alma e devolver-nos o que pensa. Mais à frente, aparece-nos o rosto de Zita Morato, também ela considerada “restos de tuga”, ou seja, a expressão ainda hoje utilizada para rotular os filhos nascidos em tempo de guerra e cujos pais partiram sem deixar rasto. Sabe a sua data de nascimento: 1968. E um pequeno detalhe: “o pai voltou para Portugal quando Zita tinha uma semana”.
Nas paredes existem mais testemunhos, imagens de Inês Miriam Henrique, cujo pai trabalhou no Hospital Militar de Bissau; Erasmo Fonseca, ao lado da sua mãe (Maria Geralda) e uma legenda a dar conta de “já ter falado ao telefone com o pai, ex-furriel português”. As histórias repetem-se: José Carlos Martins, Fátima Mané, as irmãs Ana e Florinda; Nataniel Silva Évora… Todas partilham sentimentos e alguma esperança em saber o nome do pai. No meio de rostos  magoados, um caso com final feliz: o ex-militar Manuel dos Santos cumpriu o serviço militar na Guiné-Bissau, apaixonou-se pela guineense Romana Lopes e por lá ficou com os quatro filhos do casal. Na guerra e na paz. 






“O meu trabalho não pretende fazer juízos de valor. Temos plena consciência que o tema é muito sensível e delicado. Apenas queremos fomentar o debate. Os tais filhos dos ex-militares também têm direito a seguir em frente e procurar a sua identidade. Mas, quando perguntamos sobre os pais, alguns choram. São filhos com pele diferente, mestiços ou mulatos e, na sua fase de amadurecimento foram muito mal tratados pelo colonialismo. Muitos deles, apenas têm bilhete de identidade. São filhos de pai incógnito e outros têm o apelido da mãe”, contou Manuel Roberto, fotojornalista do Público, prémio Gazeta Multimédia (2013) atribuído ao trabalho “Filhos do Vento”, uma reportagem que cruza diferentes meios partilhada por Catarina Gomes, Ricardo Rezende, Dinis Correia e Andreia Espadinha.
O título da exposição “Filhos do Vento” poder parecer poético, mas o projecto revela não só uma estética fotográfica e enorme respeito pelas personagens desta história singular, como também a grandeza de um fotojornalista sensível, capaz de ver aquilo que outros não vêm, profissionalismo pautado pela paixão, sabedoria. E humildade, atributo apenas reconhecido às pessoas sábias e inteligentes. Quem conhece Manuel Roberto e com ele teve a felicidade de partilhar o seu trabalho (como o autor destas linhas) confirmará a sua grandeza de alma e generosidade sem limites. Disse adeus ao chão que o viu nascer, em Moçambique e encontrou no burgo portuense o local de abrigo. É um fotojornalista do Porto com África no coração.
Num tempo de exibicionismo fácil onde muitos procuram a fama a qualquer preço, Manuel Roberto faz parte de uma tribo à parte, pautada pelos valores da amizade e do companheirismo. É uma espécie em vias de extinção. E pese embora as provas dadas ao longo do seu já longo percurso profissional, só agora foi possível efectuar, no Porto, em Campanhã, a sua primeira exposição individual na galeria Mira/Artes Performativas (parabéns Manuela Matos Monteiro e João Lafuente) curiosamente, a poucos metros do local da casa fotográfica onde revelou os primeiros rolos após o regresso de África. Uma dupla coincidência saudada de forma emocionada na inauguração da exposição.
Manuel Roberto nasceu em Moçambique e começou a carreira em 1985, no semanário Domingo. Em Portugal trabalhou, sucessivamente, no Jornal de Notícias e depois em O Primeiro de Janeiro. Desde 1994 faz parte do jornal Público como fotojornalista e editor de fotografia. “O Porto é a minha cidade adoptiva. Estou muito grato ao Porto e aos responsáveis do Mira por terem acolhido este projecto”, referiu. Melhor: o  Porto é que deve sentir-se honrado por ter entre nós um repórter que honra a profissão e enobrece o Jornalismo.




O livro tem um título provocador: “Furriel, não é nome de pai” (edições Tinta da China) e no subtítulo: “os filhos que os militares portugueses deixaram na guerra colonial”. Foi escrito por Catarina Gomes, jornalista no Público durante quase 20 anos, autora de vários trabalhos premiados, entre as quais, duas reportagens galardoadas com o Prémio Gazeta (Multimédia) e ponto de partida para o livro apresentado no passado sábado pela primeira vez no Porto, no Mira/Artes Performativas. Foi uma enchente de gente emocionada e feliz.

Para quem participou na guerra colonial e acompanhou a descolonização, o tema continua a ser um mito, um daqueles mistérios inexplicáveis na história da nossa contemporaneidade, muitas vezes ignorada, pouco estudada nas escolas e raramente objecto de debate e análise nos media. O que sabem os jovens estudantes sobre a guerra colonial em África? Muito pouco. E, no entanto, a tragédia provocou mais de nove mil mortos entre soldados, sargentos e oficiais; causou milhares de feridos graves e deixou para sempre uma geração com graves problemas de saúde, doenças provocadas pelo stress pós traumático de guerra.
Apesar da publicação de vários livros considerados importantes para a compreensão deste período negro da sociedade portuguesa como, por exemplo, “Os Cús de Judas”, de António Lobo Antunes ou a notável antologia “Os Anos da Guerra”, mais o romance “Autópsia de um Mar em Ruínas”, ambos de João de Melo e a RTP ter exibido alguns documentários relevantes, entre os quais, a magnífica série intitulada “A Guerra”, de Joaquim Furtado, o certo é que só através da persistência de alguns investigadores, como Aniceto Afonso e Carlos Matos Gomes tem sido possível continuar a construir de forma sistemática uma narrativa assente em factos históricos, cruzamento de fontes e relatos com os antigos militares que, durante 13 anos, estiveram envolvidos nas três frentes de batalha.
Porém, existem lacunas, episódios e muitos “pontos negros” por explicar e contar. Uma dessas histórias foi agora revelada pela jornalista Catarina Gomes e o livro “Furriel não é nome de Pai” é uma espécie de murro no estômago, capaz de sacudir consciências adormecidas, colocar frente a frente o passado e o presente de muitos ex-militares. Não é por acaso que, 44 anos depois da guerra colonial ter terminado, o tema dos filhos nascidos durante o período colonial raramente é aflorado. “Passou como uma nuvem”, ouve-se numa roda de amigos durante os almoços de confraternização de ex-militares promovidos de Norte a Sul do país.




Começa-se a folhear o livro, 236 páginas cheias de bom jornalismo, histórias de vidas de muitas crianças nascidas sem direitos, um dos quais à paternidade e mais vontade ganha o leitor para continuar. E no final, surge a interrogação: como foi possível ter acontecido este drama durante tantos anos e toda a gente ignorar, fazer de conta que desconhecia?
“Este livro é uma espécie de redenção possível, em nome de uma biografia e de uma identidade tantas vezes desqualificada, maltratada, ofendida. E uma das coisas mais preciosas deste livro é verificar que as histórias nele contidas relevam igualmente o que há de mais precioso neste ofício de escrever: a capacidade de resgatar todas as dimensões e protagonistas para a actualidade e para a nossa memória colectiva”, resumiu o jornalista e escritor Miguel Carvalho, no decorrer da apresentação de “Furriel, não é nome de Pai”. Sem esforço ou elogio fácil, o livro já entrou por direito próprio nas obras de referência sobre a guerra colonial.




Como num filme façamos um “flashback” com a memória: antes de Abril de 1974 todos os jovens eram obrigados a ir à guerra. Fatal como o destino e, poucos, muitos poucos, escapavam a embarcar em Lisboa, a bordo dos navios Niassa ou Uíge e zarpar para terras de África. Para combater o “inimigo”, dizia a propaganda da Ditadura. Em terra ficavam pais, mães, namoradas, esposas, filhos. Lenços acenar. E muitas lágrimas no cais.
Muitos deles mal sabiam pegar numa G3; outros faltavam-lhes treino, conhecimento, preparação psicológica e militar. Ao fim de três meses de recruta e outros tantos de “especialidade” formavam batalhão e recebiam a guia de marcha para partir. “Para África e em força”, dizia Salazar.
No “teatro de operações” a maioria não sabia o terreno que pisava, uma mina debaixo da árvore podia ser mortífera, uma emboscada provocava com toda a certeza mortos e feridos evacuados a muito custo para o Hospital Militar de Bissau.
No caso da Guiné-Bissau, as tropas do PAIGC controlavam uma boa parte do país, mais ainda após a declaração de Independência (1) com milhares de soldados guineenses e cubanos bem apetrechados no combate por terra, mar e ar. A guerra estava praticamente perdida, mais ainda quando apareceram os famosos mísseis antiaéreos Strela de fabrico soviético interditando todo o espaço aéreo na Guiné-Bissau.
Só o 25 de Abril de 1974 evitou uma tragédia idêntica aos trágicos acontecimentos vividos em 1961, quando a então União Indiana decidiu invadir os territórios de Goa, Damão e Diu.
No entanto, Salazar e depois Caetano queriam a todo o custo defender os restos do Império Colonial. Ao fim de 13 longos anos de intensos combates, o resultado foi desastroso: nas três frentes de combate (Guiné-Bissau, Angola e Moçambique) morreram mais de nove mil homens e contabilizaram-se cerca de 100 mil feridos. Volvidos mais de 40 anos e segundo contas da ADFA (2) “ainda existem muitos veteranos com sequelas” devidas ao stress pós-traumático de guerra. E muitos “filhos do vento”, ou “restos de tuga” cujas certidões de nascimento ficaram esquecidas na memória dos homens.


Fotografias gentilmente cedidas por: Manuel Roberto e Manuela Matos Monteiro

(A exposição continua patente até ao dia 16 de Junho, nas instalações do Mira/Artes Performativas, à Rua do Padre António Vieira, 68, em Campanhã.)

(O autor não segue as recomendações do AO)

(1)    Independência da Guiné-Bissau foi declarada por Amílcar Cabral, líder do PAIGC, em 24 de Setembro de 1973.

(2)    In DN, 18 de Abril de 2017







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