O Passado e o Presente




Por dever de ofício recordo-me do famoso plano Auzelle [Robert Auzelle, arquitecto francês contratado pela CMP nos anos 60] e das suas estimativas de crescimento para a cidade: cerca de 500 mil habitantes no ano 2000. A demografia trocou as voltas e, em 1982, apenas 330 mil almas estavam por cá. O Porto estava em contínuo esvaziamento, o efeito “donuts” crescia a olhos vistos. A cidade abria às 8 e fechava às 7 da tarde, andar de noite por Sampaio Bruno era um feito arriscado (naquele tempo os carteiristas atacavam mais à noite…) e só em dias de festa ou estreias no Sá da Bandeira as ruas ganhavam outro colorido, com destaque para a Brasileira, o café chique do Porto, palco de muitas exibições, tertúlias, monárquicos e republicanos em lugares separados. Actualmente, por cá vivem cerca de 200 mil almas. A desertificação é o maior desastre da cidade. “O turismo ajudou a salvar o Porto da decadência”, respondeu Hélder Pacheco, historiador e investigador das coisas portuenses. Porém, como em tudo na vida, exige-se bom senso (onde se compra?) equilíbrio, leis que promovam a inclusão em vez da especulação imobiliária, a descaracterização da cidade. Será aceitável destruir uma livraria histórica e centenária [Moreira da Costa] só porque o dono do hotel tem milhões e quer o espaço para construir um Spa? Será aceitável destruir um quarteirão de edifícios antigos em Fernandes Tomás (sim, eu sei, estavam abandonados) e por lá construírem um monstro de cimento armado, porventura mais um hotel, escritórios e comércio. Onde estão os estudos urbanísticos e quais os impactos paisagísticos que vão ter na geografia da cidade? Se é verdade que “não se pode congelar a cidade numa cápsula do tempo” (1) também partilho a inquietação daqueles que, apesar de serem poucos (onde estão as vozes insubmissas do Porto que barafustavam por tudo e por nada?) tentam repensar a cidade à luz de outros critérios e propostas. Ou será crime ou delito de opinião divergir do discurso politicamente correcto?
“São múltiplas as faces da cidade. Matinal ou nocturna, para a conhecer é indispensável descobrir todos os seus disfarces. Quem dela se abeira em busca do rosto único e imutável, busca a simplicidade, que é engano, a evidência no que é íntimo, misterioso, oculto”, escreveu Daniel Filipe, poeta esquecido do Porto, no seu livrinho “Discurso sobre a Cidade” (1977) comprado na livraria O Século, à Rua de Sá da Bandeira. O jornal fechou, a livraria também, a face urbana da cidade mudou. Os turistas tomaram conta do Porto. A exemplo do que sucede em Barcelona ou Veneza  não seria bom repensar a cidade e fomentar um grande debate sobre o futuro com especialistas de várias disciplinas, arquitectos, paisagistas, geógrafos. É só uma sugestão. Não levem a mal. E evitem frases feitas, ou o cliché insultuoso. Saudades, só do futuro e como tal, também “não tenho uma visão romântica e arqueológica” do Porto.

(1)    in Rui Moreira, presidente da CMP, no discurso de cerimónia de atribuição de medalhas, 9 de Julho, jardins da Casa do Roseiral, ao antigo Palácio de Cristal.

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