Lar doce lar
As primeiras
imagens de choque sobre o aparecimento do Monstro na Europa chegaram-me de
Itália, através da Sky News, nas ruas e hospitais da belíssima cidade de
Bérgamo. Vão ficar na memória. Foi há dois meses, na abertura do jornal da
noite (SIC) e fiquei completamente paralisado. O apetite voou pela janela e os
meus olhos ficaram em pranto. Como foi possível ter acontecido esta pandemia
quando tudo, aparentemente, estava a correr bem? Em Portugal já tinham tocado as campainhas de
alarme e exigia-se ao SNS milagres que, uns meses antes, uns quantos atacavam (por
ignorância, ou má fé) e a maioria manifestava apoio por ter um SNS dos melhores
do Mundo.
Durante os
primeiros dias, dei por mim sentado, religiosamente, à hora certa, para assistir
às conferências de Imprensa da DGS. Sucediam-se as perguntas atrás de
perguntas, as respostas dadas por rostos cansados e, muitas vezes, difusas perante
a complexidade dos problemas. Tudo era assustador, medonho, com mortes a
subirem diariamente em Portugal e em flecha na vizinha Espanha, Itália, França,
EUA, Brasil, Índia…As maiores dores de cabeça vinham das pessoas infectadas em lares,
muitos deles sem condições de higiene e sanitárias, falta de pessoal especializado,
ausência de cuidados de saúde. A novidade só foi surpresa para quem anda
distraído, ou finge não saber. (Para memória futura: a maior parte dos lares em
Portugal são armazéns de idosos e muitos deles funcionam de forma clandestina e
à margem das leis. Toda a gente sabe, mas os sucessivos governos e a Segurança
Social têm sido ineficazes neste combate. Depois, os interesses e o
encobrimento de quem tem responsabilidades nesta matéria fazem o resto).
Telejornais
infindáveis
Ao fim de
alguns dias confinado e atordoado por milhares de notícias, entrevistas, “reportagens
em exclusivo”, debates e mesas-redondas com diversos especialistas em saúde
pública, virologistas e cientistas, tomei uma decisão radical: apenas fazer “zapping”
às notícias e desligar a televisão dos infindáveis telejornais com falsos
directos que, em alguns casos, atingiam quase duas horas de emissão. Por uma
questão de sanidade mental, também deixei de ver as palhaçadas do Trump e do psicopata
Balsonaro.
Em troca, ganhei
mais tempo para a leitura de jornais (não dispenso o Público e o Expresso desde
que existem) e fui à estante buscar diversos livros esquecidos. A agenda está
sempre cheia de acontecimentos, eventos, concertos, filmes, sessões de poesia
online. Os dias até parecem outros e agora, tenho a sensação de serem mais longos,
muito mais ricos do ponto de vista espiritual e cultural. Só numa semana, entre
o dia 25 de Abril e o dia 1 de Maio pude observar uma mão cheia de bons filmes,
como “A Condessa de Hong-Kong” (1967) de Chaplin; “Forte Apache” (1949) de John
Ford; “Adeus Lenine” (2003) de W. Beker;
“A Condessa Descalça” (1954), de Joseph L. Mankiewicz; “ Os Filhos da Noite”
(1949) de Nick Ray; mais um excelente documentário sobre Hitchcock (RTP2) e para
terminar, revi “Janela Indiscreta” (1955) do mesmo realizador.
Como existem
muitas iniciativas transmitidas pela Internet, tive tempo de sobra para escutar
a importante entrevista do poeta e cardeal do Vaticano, José Tolentino Mendonça
(através do site da Fundação Francisco Manuel da Mota); viajar até aos
arredores de Paris, ao Palácio de Versailles e na companhia do Mezzo, assistir ao
fabuloso bailado “Phaeton”, uma tragédia musical lírica interpretada pela Ópera
Royal de Versailles, com música do compositor Jean-Baptiste Lully, um dos favoritos
da corte de Luís XIV. A agenda ainda permitiu seguir algumas actividades programadas
por Serralves, CdM, TNSJ e Galerias Mira.
Filmes,
livros e músicas
E assim
tenho vivido neste convento especial, clausura quase total, cumprindo escrupulosamente
as regras da Direcção-Geral da Saúde e apenas colocando pé na rua para ir ao
supermercado ou à farmácia. E com o foco virado para a Arte. Para hoje programei
dois filmes imperdíveis: Táxi (2015) do iraniano Jafar Panahi e Roma (1972) de
Fellini e lá pela noitinha, tenciono retomar
a leitura de “O Resto é Ruído”, de Alex Ross, uma obra monumental cujo
resultado final “não é tanto uma história da música do séc. XX, mas sim, uma história
do séc. XX através da sua música”.
Se o leitor
teve a paciência de seguir estas linhas, já percebeu que, por este andar, com
ou sem confinamento social, vou ficar muito mais tempo em casa. Por uma razão
simples: estou a sentir-me muito bem. E como a vacina milagrosa vai demorar um
ano (na melhor das hipóteses) o meu refúgio será sempre este convento onde tenho
sempre muitas opções à escolha, Net 24 horas, televisão por cabo, estantes com livros,
revistas, milhares de Cd´s, centenas de filmes.
A saúde não
tem preço. E tudo o resto é ruído.
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