POEMAS DA LIBERDADE FORAM À GUERRA E VOLTARAM


 


 
 


 

 

Em finais dos anos 60 do século passado, o alferes médico Jorge Ginja não escapou à guerra colonial e, tal como milhares de jovens da sua geração, recebeu guia de marcha para Angola. Na bagagem, transporta uma mala e lá dentro, um enorme aparelho, uma fita gravada com músicas e poesias de nomes fundamentais da cultura portuguesa, Sebastião da Gama, José Gomes Ferreira, Armindo Rodrigues, Gastão Cruz, Manuel Alegre, porventura, o poeta da Resistência mais vezes escutado na Ditadura. Lá longe, em Cabinda, entre A Noite e a Madrugada, os poemas ditos por Mário Viegas ganham outra ressonância e força: “Neste caminho de Luanda para o Norte metralhadoras cantam a canção da guerra”. Quase 50 anos depois, as bobines foram descobertas no meio de centenas de livros e resgatadas para avivar memórias.  

Um “feliz acaso”, ou talvez, um “achado arqueológico”, o certo é que, há pouco mais de dois anos, as gravações foram encontradas na residência de Jorge Ginja, em Vila Real, onde durante longos anos estiveram depositadas numa gaveta. Incólumes, com grande qualidade técnica e perfeitas em termos de audição. “As gravações têm uma acústica fantástica”, realçou Paulo Gaspar Ferreira, fotógrafo, editor do livro “Voz Própria-Jorge Ginja eMário Viegas, Poesia, Resistência e Liberdade”, muito mais do que um livro, antes um pequeno tesouro, onde além da poesia, existem excertos da peça “Pequenos Burgueses”, de Gorki e “Os Malefícios do Tabaco”, de Tchékhov.

Jorge Ginja sabia muito bem da existência deste legado patrimonial, mas os afazeres, as mil e uma coisas onde foi empenhando a sua militância cívica e política ao longo da vida, além de médico no Hospital de Santo António, no Porto, fez parte do Movimento de Esquerda Socialista e delegado regional de Cultura do Norte, pelo PS, durante os governos de António Guterres e vereador na Câmara de Vila Real, levaram-no a adiar a descoberta, o fabuloso tesouro na sua arca encantada.

 “Tenho para aí umas gravações com o Viegas que levei para Angola, mas não sei onde estão”, repetiu várias vezes o médico. A resposta da mulher, Manuela Jorge, foi sempre a mesma: “Tenta procurar, senão qualquer dia já não vais a tempo”. Jorge Ginja morreu em Maio de 2020 e não gostava muito de falar sobre a guerra colonial e o drama vivido em Cabinda. Porém, a família não desistiu de resgatar os poemas da penumbra. “O Jorge teve muitas vidas. Fez teatro [no TUP] lutou pelo SNS, empenhou-se na criação do Sindicato dos Médicos e na gestão democrática do Hospital [de Santo António]. Esteve sempre na linha da frente. Tenho a certeza que este livro é uma bela homenagem”, disse, ao Sete Margens.

 

Poesia e liberdade

 

Para quem não viveu esses tempos ou apenas soube de alguns episódios através de testemunhos em segunda mão, vale a pena recordar que Porto entre os anos 60 e 70 vivia um clima de “desassossego permanente”, greves, manifestações, lutas fortemente reprimidas pela PSP, comandadas pelo sinistro Santos Júnior, com a polícia política a prender activistas dos movimentos sindicais e estudantis. Os ecos do Maio 68 encorajavam muitos jovens a lutar contra a guerra colonial e tanto Jorge Ginja como Mário Viegas encontram no Teatro Universitário do Porto a cumplicidade necessária para levar por diante a rebeldia poética e teatral que defendiam.

Ambos organizam diversos convívios musicais com cantores de intervenção, José Afonso, Fanhais, Manuel Freire, recitais de poesia onde Mário Viegas arrebata multidões de entusiastas e aplausos. Até que a PIDE começou a rondar a porta e colocar os seus “informadores” nas tertúlias organizadas na Unicepe (à Praça dos Leões) no TEP e no Cineclube do Porto, mais a Árvore e no “Piolho”, onde toda a gente de Esquerda reunia e conspirava à mesa do café. Tanto Viegas como Ginja frequentavam os mesmos locais e tinham os mesmos anseios de Liberdade e Democracia.

“Imagino Jorge Ginja na solidão de Belize, em Cabinda, naqueles dois anos que ele considerou os piores da sua vida, estou a vê-lo a ligar o gravador e a ouvir às vezes, talvez com auscultadores, a voz dos poetas na voz de Mário Viegas. E outras vezes, em som aberto, para partilhar e levar aos outros aquela voz e aqueles poemas. E entre eles, porventura, algum poema por mim escrito naquela guerra onde tinha estado oito anos antes. Sem conhecer  Jorge Ginja nem Mário Viegas, acabei, graças à poesia, por me encontrar  com eles neste enredo. Estou a ver o filme que se podia fazer”, escreveu Manuel Alegre, na crónica “Um gravador, uma fita na poesia” inserta no precioso livro.

A obra tem quase 200 páginas, soube aliar ao bom gosto e design gráfico, mais dois compact disc’s com a voz límpida e única do “diseur” Mário Viegas e, no início de cada página, um pequeno QR code, espécie de guia de audição de cada poema. Apenas é necessário um telemóvel para ouvir a voz única de Mário Viegas, ainda muito jovem, vibrante na arte de saber entoar cada sílaba poética e para quem o conheceu, não pode esquecer o seu rosto franzino, olhos enormes, um infindável amor ao teatro e à poesia.

Além dos autores acima referenciados, a publicação abrange poetas de eleição e poemas únicos de António Gedeão, Alexandre O´Neill, Vinicius de Moraes, Pablo Neruda, Joaquim Namorado, Bertolt Brecht e José Carlos Ary dos Santos, um naipe de poemas escolhidos por Jorge Ginja, ditos por Mário Viegas e levados na mala pelo jovem alferes médico. Foi a fórmula perfeita para a poesia voar até África e fazer esquecer os sons da guerra.

Ultima nota para acrescentar o seguinte: Voz Própria/Poesia, Resistência e Liberdade, recebeu o apoio da DRCN-Direcção Regional da Cultura do Norte e foi há dias lançado no auditório lotado do Museu Nacional Soares dos Reis. Está à venda na “In Libris”, à Rua do Carvalhido, na RELI/ Rede de Livrarias Independentes e aos balcões da Rede dos Museus Portugueses.

 

 

 

 

 

 

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