Os deslocados de sempre no Festival de Cinema de Avanca

 Imagem do filme "Pessoas de Lugar nenhum". Foto © Direitos Reservados

Imagem do filme “Pessoas de Lugar nenhum”: a preocupação com os deslocados é uma constante neste festival. Foto © Direitos Reservados

 

O filme Pessoas de Lugar Nenhum, do cineasta chinês Zhandong MA, filmado entre 2005 e 2020, na segunda zona especial do Estado de Wa, de Myanmar, será a grande curiosidade da 26ª edição do Avanca Festival Internacional de Cinema. A estreia mundial deste filme, mais de quatro horas de duração, irá acontecer na próxima terça-feira, dia 22, a partir das 16 horas, no Cinema Vida, em Ovar, um dos locais do certame. “É uma obra monumental que aborda a cultura, o drama de um povo marginalizado e hostilizado numa zona de ninguém. É um filme marcante sob todos os pontos de vista”, adiantou ao 7MARGENS António Costa Valente, professor de cinema e director do Festival.

Pessoas de um Lugar Nenhum é uma produção de Hong-Kong e as filmagens incidiram numa região localizada entre Myanmar e a China, em cujo território as autoridades locais “ignoraram” a existência de grandes zonas do território ligada à cultura do ópio. Mais tarde, o governo de Pequim mandou encerrar os referidos campos de cultivo e milhares de pessoas – que viviam literalmente da sua produção –, deixaram de ter a sua fonte de subsistência. E toda a gente se esqueceu deste povo, ficando num território perdido, no meio do nada e isolados. “Todos os responsáveis políticos ignoram esta comunidade”, diz António Costa Valente.

A acção deste documentário tem um contexto histórico preciso: 1966, reforma agrária e Revolução Cultural chinesa de Mao (seguindo-se um rasto de violência, ignomínia e milhões de mortos). Neste período, uma multidão foge para o Estado de Wa em busca de uma vida melhor, espécie de “El Dourado”. “O filme é polémico, mas consegue fazer uma leitura importante sobre a vida desta comunidade, as relações entre política e história, o abandono deste povo e a perca da sua identidade. O mais curioso é que as identidades das pessoas nunca foram reconhecidas. É como não existissem”, conclui o director do Festival.

Tempos de guerra e fome

Vivemos um tempo de guerra, fome, naufrágios, deslocação forçada de milhões de pessoas de várias geografias e latitudes, Síria, Ucrânia, África, Médio Oriente. Os dramas estão cá e, como não podia deixar de ser, o cinema captou o sofrimento da Humanidade. Em tempo de grande imediatismo e actualidade, o Avanca Film Festival terá como tema nuclear “Os Deslocados”, título oportuno de um certame que, ano após ano, tenta abrir novos horizontes e trazer à freguesia do Nobel da Medicina [Egas Moniz] um lote de filmes de todo o mundo e também, muitos alunos, cineastas, investigadores, gente do cinema.

Nos dias seguintes à exibição de Pessoas de Lugar Nenhum, o festival entra numa velocidade de cruzeiro, de manhã à noite, com obras para todos os gostos e categorias, 134 filmes, 30 estreias mundiais, 59 dos quais com estreia prevista em Portugal, entre os quais, No País da Alice, de Rui Simões, autor de Deus, Pátria e Autoridade (1975) porventura, um dos filmes mais vistos e debatidos ao longo dos tempos, e Bom Povo Português (1980), entre muitos outros documentários.

O filme tem exibição agendada para o dia 29, às 14, 30 horas (Auditório Paroquial de Avanca) e, segundo Rui Simões, No País da Alice traduz o “início de uma partilha intergeracional com Portugal presente como pano de fundo, onde o realizador e a sua pequena filha deambulam como quem questiona, tentando compreender o país de hoje”. Apesar do longo percurso como cineasta, Rui Simões, 78 anos, esteve 40 anos sem filmar, uma vez que, os seus projectos nunca foram aprovados pelo ICA (Instituto de Cinema e Audiovisuais).

Rui Simões e No País da Alice

Até que, em 2020, fez-se luz e Rui Simões conseguiu começar a rodar o argumento No País da Alice. Em entrevista ao Diário de Notícias (5 de Novembro de 2020) o cineasta explica a mudança de atitude: “Houve uma coincidência de júris, houve pessoas que me conheciam, conheciam o meu trabalho e não tinham nada contra. […] Houve uma fase que foi censura clara, é óbvio, não tenho dúvidas, depois houve uma fase de ‘não vale a pena, este tipo não existe’,… Sei lá, não sei”, disse, na altura. Dois anos volvidos o filme foi selecionado e está no Avanca.

Na secção de competição de longas estão filmes como: Make-Believers, do japonês Kenjo McCurtain, Travels inside foreign heads, produção francesa realizada por António Amaral, onde “a emigração e os deslocados estão fortemente presentes” e Atlas de Niccolò Castelli, coprodução italo-suíça; a que se juntam quatro estreias mundiais, três delas portuguesas: Looking For A Heart Of Gold de Rudolf Mestdagh (Bélgica, Brasil); Posso olhar por ti de Francisco Lobo Faria (Portugal); José Luís Espinosa – o espião de Alfonso Palazon (Portugal); e Epopeia Gandareza, de Vasco Otero (Portugal).

Na corrida pelo prémio de melhor curta-metragem estarão nove filmes: Toutes les nuits de Latifa Said (França); Sorda de Nuria Muñoz e Eva Libertad (Espanha); November de Camille de Leu (Bélgica); Last Visit de Spiros Alidakis (Grécia); Kalashnikov de Mehroz Amin (Paquistão); Lifeline: The Brothers Who Hold the Same Breath de Abdullah Şahin (Turquia); Without you de Sergio Falchi (Itália); Boca Cava Terra de Luís Campos (Portugal); e Maktub de Joaquim Haickel e Coe Belluzzo (Brasil).

Dentre, um filme em rodagem

Em jeito de aquecimento para a maratona cinéfila foi já exibido o filme-concerto Dentre, do realizador e compositor Joaquim Pavão. “É um projecto sui generis, uma vez que a primeira versão foi apresentada na abertura do festival e, nos outros dias, continuarão os trabalhos de recolha de imagens. É um filme em rodagem, cuja versão final chegará em 2024. Ainda faltam dois anos de filmagens”, contou ao 7MARGENS António Costa Valente.

Uma nota final para reafirmar o carácter do festival que, em 2022, procura ser o “reflexo da produção cinematográfica dos cinco continentes e a sua preocupação quanto aos deslocados” do mundo. O Festival é uma iniciativa do Cineclube de Avanca (o cineclubismo está vivo e recomenda-se) e da Câmara de Estarreja; tem apoios do ICA / Ministério da Cultura, Instituto Português do Desporto e Juventude, Turismo do Centro, Junta de Freguesia de Avanca, Agrupamento Escolar de Estarreja, paróquia e associações de Avanca contando, ainda, com a preciosa ajuda de várias universidades e escolas de ensino superior do país, empresas e outras instituições da região.

 

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