Uma história poética e visual de João Gonzalez venceu o Curtas de Vila do Conde

 Ice Merchants: uma estimulante metáfora de luta pela vida e sobrevivência, uma história poética e visual para rever.

Ice Merchants: uma estimulante metáfora de luta pela vida e sobrevivência, uma história poética e visual para rever. Imagem captada do filme.

O filme de animação Ice Merchants (2022), de João Gonzalez, e Nest (2022), do islandês Hlynur Pálmason, foram os grandes vencedores, respectivamente, nas categorias nacional e internacional do Curtas, cuja 30ª edição terminou neste sábado, 16, em Vila do Conde. Na memória, tudo aconteceu Ao Correr do Tempo (Wenders) com revelações épicas e únicas, Guns Van Sant, Peter Greenaway, Tsai Ming-liang…  “O festival está vivo e recomenda-se. Daqui a 30 anos está cá”, antevê Miguel Dias, da direcção artística do certame. Quem vai ao Curtas acerta sempre e no final sai mais rico. E deslumbrado com as descobertas cinéfilas.

Foi sem surpresa que Ice Merchants, do portuense João Gonzalez, recebeu o galardão de Melhor Filme e também, do público. Em Cannes, já tinha conquistado o prémio do júri da Semaine de la Critique em curta-metragem (um feito histórico) e, em Vila do Conde, também não teve concorrência à altura: tanto o público, na sua maioria jovem, estudantes e cineastas, como o júri deixaram-se contagiar por um drama familiar: um pai e um filho são obrigados a deslocarem-se desde o sopé da planície onde vivem até à aldeia com o objetivo de venderem gelo; ou seja, uma estimulante metáfora de luta pela vida e sobrevivência, uma história poética e visual para rever.

No momento de subir ao palco e receber o cobiçado galardão, João Gonzalez foi humilde e recordou palavas já ditas: “Sem equipa não se fazem filmes.” Os aplausos ouviram-se na rua e as conversas no foyer do Teatro Municipal desaguavam no notável feito do cineasta, já que, com este duplo reconhecimento, Ice Merchants irá figurar na restrita lista de curtas com acesso aos Óscares da Academia de Hollywood, em 2023. Não é para todos…

Formado na ESMAD de Vila do Conde e com mestrado na Royal College of Art, em Londres, o realizador de 26 anos é considerado um dos nomes mais importantes do moderno cinema de animação. O premiado trabalho surgiu após The Voyager (2017) e Nestor (2019) que, segundo a Agência da Curta-Metragem, foi exibido em 93 festivais e visto por mais de 12 mil espectadores.

A outra grande ovação da noite na competição internacional foi para Nest, de Hlynur Pálmason. Uma segunda história de vivência humana, desta vez entre irmãos que vivem num espaço de natureza misto de beleza e horror. “Este filme demonstra a arte do cinema enquanto exploração do tempo e espaço na sua aceção mais pura”, diz o júri constituído pelos realizadores, produtores e críticos Yun-Hua Chen, Anna Azevedo, Chema García Ibarra, John Canciani e Susana Rodrigues.

Para memória futura, o realizador dinamarquês soma e segue: este ano também já apresentou, em Cannes, a longa-metragem Vanskabte Land e desde 2012 tem obtido vários prémios e distinções: Winter Brothers no FEST/Festival Novos Realizadores Novo Cinema e no Festival de Cinema de Locarno.

O extenso palmarés do certame contemplou outros formatos e categorias: Aos Dezasseis, de Carlos Lobo (melhor realizador português) e Garrano, de David Doutel e Vasco Sá (animação); Cuerdas, de Estibaliz Urresola Solaguren, Espanha (Melhor Ficção); Darkness, Darkness, Burning Bright-Oraison, de Gaelle Rouard (Experimental) e Mistida, de Falcão Nhaga (secção Take One), enquanto o videoclipe de Leonor Pacheco, Alento, de Pedro Pestana & Nils Meisel venceu na secção dedicada a este tipo de experiências com The Glory of Terrible Eliz, no programa My Generation e Os Potemkinistas, da romena Radu Jude, Prémio Europeu do Cinema.

De fora de possíveis distinções, ficaram alguns filmes que, à partida, podiam ser contemplados pelo júri, como , de Margarida Vila-Nova, onde uma câmara atenta e sensível navega perante um drama pungente de um homem em fase final de vida e onde o actor Adriano Luz constrói uma personagem capaz de agarrar o espectador até às sequências finais; O Casaco Rosa, de Mónica Santos (uma animação e alegoria ao comportamento do célebre Rosa Casaco, inspector da PIDE, de má memória…) ou ainda, Janela do Inferno, de Pedro Maia.

Depois de uma maratona de 124 sessões espalhadas por diferentes palcos e espaços urbanos, 267 filmes de 42 países e seis concertos, homenagens em jeito de revisitação da filmografia de cineastas fundamentais como Alain Resnais e François Reichenbach, mais um ciclo dedicado a António Campos, sem esquecer as obras de Carla Simón (que provocou grande admiração com Alcarràs) e Marie Losier, o Curtas chegou ao fim. O próximo já tem data marcada: 8 a 16 de Julho de 2023.

Manuel Vitorino é jornalista.

Comentários