O cinema como lugar de memória e espaço de confronto estético

 Fotografia do filme Senhora Aparecida, de 1994

Fotografia do filme Senhora Aparecida, de 1994, de Catarina Alves Costa. Foto © DR

 

“O excesso de informação e de imagens que caracteriza a contemporaneidade tende a conduzir ao entorpecimento das capacidades críticas das sociedades”, afirmou ao 7MARGENS Filipe Martins, realizador, professor e programador do Family Film Project que, juntamente, com Né Barros, coreógrafa e bailarina, assumem a direcção desta 11ª edição dedicada à visualização e discussão de filmes assentes no binómio “Vidas e Lugares/ Memória e Arquivo”, bem como a secção competitiva dedicada à Ficção e Animação. Ao todo, serão exibidos 21 filmes provenientes de 15 países, em diferentes locais do Porto [Coliseu, Passos Manuel, Trindade e Maus Hábitos].

A sessão de abertura do Family está prevista para esta terça-feira, 18 de Outubro (Coliseu Ageas) com o filme/concerto Heróis do Mar e a Orquestra Filarmónica Gafanhense +a Comunidade e terminará no dia 22 (Cinema Trindade) com o anúncio dos filmes vencedores e a exibição de Senhora Aparecida (1994), um documentário de Catarina Alves Costa, cineasta e antropóloga, cuja programação prevê rever Regresso à Terra (1992); O Arquitecto e a Cidade Velha (2002) e A Seda é um Mistério (2003), bem como a orientação de uma masterclass  pela realizadora de Margot (recentemente estreado no Doclisboa).

A par dos registos de Catarina Alves Costa e dos filmes a concurso, as atenções estão, igualmente, viradas para Nuria Giménez que, além da exibição do premiado My Mexican Breztel (2019) “obra singular na problematização da memória e na apropriação do arquivo” a cineasta irá, igualmente, orientar uma masterclass para o público interessado. Feitas as contas, o Family Film Project acontece não só devido à teimosia dos seus artífices, mas também porque, cada vez mais, investigadores, realizadores e gente com diferentes preocupações estéticas considera este tipo de cinema como importante do ponto de vista da Antropologia, mas também da memória visual e histórica.

 

7 M – O cineasta e etnólogo Jean Rouch, considerado por muitos como o pai do “cinema verdade”, explorou a câmara de filmar como forma de registar os costumes, artes, tradições, povos e culturas. Nesta edição do Family, um dos focos da programação é o cinema etnográfico, como, entre nós, também fez António Campos. A exibição e estudo da obra da cineasta e antropóloga Catarina Alves Costa inscreve-se nesta matriz do conhecimento e da realidade portuguesa ou, dito de outra forma, na descoberta e divulgação de um país que já não existe?

Filipe Martins (F.M.) – O foco que este ano dedicamos à Catarina Alves Costa vai ao encontro de uma das principais valências do Family Film Project, que é a etnografia. O cinema tem um potencial etnográfico evidente, desde logo enquanto ferramenta de registo, mas interessa-nos também o potencial performativo do cinema e, em particular, o modo como o olhar etnográfico pode ser combinado com a subjetividade do cineasta na sua busca de uma autenticidade estética que supera o realismo informativo da antropologia científica e dos respetivos registos etnográficos.
O cinema directo e o cinéma vérité também souberam explorar esta componente performativa e concetual do cinema, apesar da aparente busca de uma “objectividade” integral. O cruzamento assumido – embora por vezes subtil – entre o foco etnográfico e a assinatura autoral foi o que nos atraiu na obra da Catarina Alves Costa. E há também um carácter arqueológico do próprio cinema que procuramos destacar e homenagear: da extensa obra da Catarina, optámos por uma seleção de quatro dos seus filmes mais antigos, entre 1992 e 2003.

 

7M – Os estudiosos dos média dizem-nos que vivemos numa “sociedade do espectáculo”, onde milhões de pessoas vivem numa bolha rodeadas de imagens em catadupa, fake news nas redes sociais, sem escrutínio, meias verdades entre a mentira e a manipulação. A televisão está cheia de lixo e a fronteira entre o entretimento e informação esbateu-se. O cinema documental pode ajudar à construção de outra narrativa e a devolver-nos um outro olhar sobre a autenticidade do país, suas gentes e modos de vida?

F.M. – Há aqui várias questões interligadas que são recorrentes: a distinção entre documentário e ficção, entre verdade e falsidade, entre arte e entretenimento. De facto, o excesso de informação e de imagens que caracteriza a contemporaneidade tende a conduzir ao entorpecimento das capacidades críticas das sociedades. Fala-se de um paradigma de pós-verdade.
As imagens já não têm o mesmo valor factual (veja-se, por exemplo, a tecnologia emergente do deep fake). Perante este “dilúvio da informação”, o cinema documental pode contribuir para a manutenção de duas frentes discursivas, dois tipos de verdade ou autenticidade: em primeiro lugar o plano dos factos (que tente a distinguir o próprio género documental) e em segundo lugar aquilo a que podemos chamar o distanciamento estético. Em ambas as frentes, combate-se a postura acrítica e restitui-se uma vigilância mais profunda e política.

 

7M – Qual a razão, ou razões, subjacentes ao facto de esta edição do Family privilegiar temas importantes e fundamentais como o Arquivo, a Memória e a Etnografia? Estes assuntos não têm sido abordados e estudados como deviam pelas universidades e a sociedade em geral?

F.M. – Desde a sua 1ª edição há mais de uma década, o Family Film Project elegeu o Arquivo, a Memória e a Etnografia como principais palavras de ordem, não necessariamente por considerar que esses tópicos não eram até então suficientemente abordados, mas sobretudo por haver a perceção de que tais tópicos estavam e estão a tornar-se cada vez mais relevantes num mundo em rápida mudança e onde abundam as imagens e o seu arquivamento.
É hoje percetível que estas zonas temáticas têm vindo a ser crescentemente valorizadas tanto pelo público cinéfilo interessado em formas alternativas da expressão cinematográfica, como também pela Academia ligada às Ciências da Comunicação, à Estética e aos Estudos Fílmicos.

 

7M – Vivemos tempos difíceis com uma guerra na Europa, milhões de deslocados da fome e da miséria, gente sem esperança e um mundo de incertezas face à barbárie. A arte e o cinema em particular podem ajudar a reconstituir a memória e a acalentar alguma esperança neste mundo em ruínas?

F.M. – Os problemas civilizacionais do presente reforçam a importância e urgência de um reforço da atitude crítica e vigilante, a qual se faz também através do cinema. O nosso texto de apresentação da edição de 2022 do Family Film Project começa precisamente com um comentário nesse sentido: “Vivemos num mundo governado pelas imagens que nos chegam por mediação das telas e ecrãs. Aderimos ao consumismo frenético das imagens, tanto mais frenético quanto maior a torrente de informação. Num mundo global com crescentes desafios civilizacionais, onde conceitos como os de guerra, epidemia ou crise climática nos parecem cada vez mais palpáveis e próximos, é importante que tais imagens mediáticas não sejam negligenciadas enquanto fontes de informação, mas também que não sejam devoradas acriticamente. Fala-se, por um lado, de pós-verdade e dilúvio da informação; e também se fala de alienação e escapismo na ‘sociedade do espectáculo’, para usarmos um termo de G. Debord. Contra estes cenários, acenamos com os valores da ciência, mas também da arte.”

 

Catarina Alves Costa é especialista na área da etnologia, diz Filipe Martins. Foto retirada do programa

Catarina Alves Costa é especialista na área da etnologia, diz Filipe Martins. Foto retirada do programa

 

7M – O Family Film Project destina-se, preferencialmente, a exibir filmes de carácter alternativo e para todos os públicos, ou tem como público-alvo os estudantes das escolas de cinema e estudiosos da sétima arte?

F.M. – A programação do Festival destina-se a todos os públicos, oferecendo um leque diversificado de conteúdos que incluem sessões de cinema, masterclasses, filmes-concerto (este ano, o filme-concerto contará com a participação da Orquestra Filarmónica Gafanhense), workshops para jovens e crianças e ciclos de performances que exploram a transversalidade entre o cinema e outras artes.
Por outro lado, é verdade que o Festival procura, também, manter-se fiel a um tipo de cinema marginal e alternativo que se afasta claramente do mainstream, mesmo em comparação com outros festivais de cinema igualmente apostados em nichos cinematográficos. Neste último sentido, o Festival acaba por responder em primeiro lugar a um público-alvo naturalmente mais restrito que é constituído em grande parte por estudantes de cinema e investigadores.

 

7M – Após a revelação de alguns nomes de referência mundial no mundo do cinema (como Jonas Mekas, Alina Marazzi, João Canijo, Regina Guimarães, Daniel Blaufuks ou Cláudia Varejão, cineasta com um longo palmarés em festivais internacionais), o Family sente-se recompensado pelo esforço feito, ou ainda não teve o reconhecimento devido das entidades oficiais? E os média estão atentos a estes acontecimentos culturais ou colocam na gaveta de “cinema marginal” e dão-lhe pouco relevo noticioso?

F.M. – Sem dúvida que a atenção dos media ou o tempo que dedicam ao festival não têm sido os necessários. Apesar das onze edições e dos seus programas, o festival ainda não chegou a muita gente. Curiosamente, em Lisboa, num determinado segmento de público, o nosso festival é muito apreciado. Seria importante que o olhar de quem divulga alternasse entre eventos com dimensões maiores e eventos mais focados e alternativos. Há muito a repensar ao nível das formas de divulgação e de circulação dos projetos nacionais.

 

7M – Que balanço fazem até agora do caminho percorrido? Quais as principais dificuldades?

F.M. – O balanço é muito positivo por vários motivos. Ter conseguido reunir até agora um conjunto de programas de qualidade que contribuem para uma investigação e conhecimento no âmbito da temática do festival. O site torna-se já um objeto importante de fontes de informação sobre um determinado cinema. Por outro lado, o público e o interesse têm vindo a aumentar. Também o facto de poder realizar um projeto com pertinência no mundo de hoje é motivo de satisfação. As dificuldades prendem-se ainda com a necessidade de fazer crescer os apoios e, como referido anteriormente, conseguir maior visibilidade do festival. De resto, a ideia nunca foi crescer, mas apurar sempre a qualidade do projeto.

 

7M – Será possível desvendar alguma surpresa para 2023?

F.M. – Não podemos avançar o nome do artista-foco porque ainda não está completamente confirmado. Contudo, podemos dizer que seria mais um, neste caso internacional, com uma filmografia essencial no domínio que temos vindo a trabalhar.

 

Mais informações na página do festival ou através das redes sociais Facebook e Instagram.

 

Manuel Vitorino é jornalista

Comentários