António Cruz e o cinema de Oliveira: dois olhares estéticos sobre o Porto

 

 

 Antônio Cruz o pintor e a cidade | Trade Stories     O Pintor e a Cidade @ CinePT-Cinema Portugues [pt]

 

 "António Cruz (...) é sem contestação possível o maior aguarelista português dos tempos modernos. Tirou a aguarela da banalidade para que a tinham arrastado Roque Gameiro e os aguarelistas portugueses. Deu-lhe grandeza, ressonância sinfónica; levou-a até atingir o valor de uma alta expressão sintética e afastou-a da superficialidade habitual. (...)" (Abel Salazar)

O pintor António Cruz (1907-1983) foi um dos maiores aguarelistas do século XX e, até hoje, ninguém mais soube captar a alma da cidade, o rio e as pontes, as neblinas. “É no inverno que eu sinto a minha felicidade” (Cruz, 2015, p. 2) diz o pintor quando está no bairro da Lada, à Ribeira, em Pena Ventosa e nas Aldas, à Sé, nas margens do Douro junto à ponte de Eifel, ou estação de São Bento, antigo Mosteiro de São Bento de Avé-Maria. Teve um rol imenso de seguidores. Nunca, como ele, souberam resgatar a aguarela da mediania e dar-lhe outra dimensão pictórica. Basta olhar e ver. “O nosso Turner português” foi sempre um pintor irreverente, avesso a modas, um esteta, talvez um eremita das imagens. De cabeleira branca, olhar azul, cavalete a tiracolo, caixa de pincéis ao ombro e passo apressado lá ia ele vagueando pelas ruas da cidade onde vivia, ali para os lados do Carvalhido, cuja alma imortalizou na sua paleta policromática. Só um artista superior teve o dom divino de captar com tanta sensibilidade e talento um Porto que já não existe. Ficaram as memórias.

O cineasta Manoel de Oliveira (1908-2015) seu amigo e cúmplice, ambos da mesma geração, desafia-o a seguir-lhe os passos e leva a efeito “O Pintor e a Cidade” (1956) um documentário cheio de imagens impregnadas de poesia e de simbolismo, onde uma câmara regista o olhar do artista e o modo geométrico como transpõe para a tela o amanhecer da cidade, paisagens e território, ícones da arquitectura portuense, ponte Luís I, torre e igreja dos Clérigos, a silhueta luminosa do Douro com os batelões carregados de carvão na Ribeira e Guindais. No filme de Oliveira, existem homens, mulheres e crianças; nas aguarelas de António Cruz presente-se o sentimento, a beleza dos lugares, as paisagens únicas da cidade, o olhar pictórico do velho burgo, um sortilégio ter captado a essência e o espírito. Por outras palavras, só um artista da dimensão de António Cruz, com a sua genialidade, conseguia dar outra dimensão à aguarela e fixar imagens únicas do Porto de ontem e de sempre. O filme “O Pintor e a Cidade” também pode ser admirado como o prolongamento da obra pictórica, uma imersão em película - curiosamente, rodado a cor -, porventura uma simbiose entre o olhar do artista e o celuloide, planos, sons, ambientes, apenas acessível a um exegeta das imagens.

 

                 António Cruz - O pintor e a cidade

 

          

 

 Percurso estético

Abordar a vida e obra de dois artistas com um percurso singular/estético distinto, num caso pictórico (António Cruz) no outro cinematográfico (Manoel de Oliveira) - pressupõe contextualizar o tempo histórico e político do país, regime de Ditadura, a mais antiga da Europa, uma escola fechada ao exterior -, mas também, perceber o ambiente mental, social e cultural do Porto no segundo quartel do séc. XX, mais ainda, do país (e a Europa) ainda a braços com uma grave crise económica e social motivada pelos estilhaços da II Guerra Mundial (1939-1945).

Apesar dos efeitos causados pela destruição e morte, cidades literalmente arrasadas pelo terror do regime nazi, os pintores, escritores, poetas e outros criadores nunca deixaram de conceber e imaginar outros mundos para a Arte, com Paris a ocupar o centro de todas as atenções, confluência e ponto de encontro de muitos intelectuais amantes da liberdade, ideias e experiências que, vieram revolucionar completamente as primeiras décadas do século XX com o aparecimento de novas vanguardas estéticas e artísticas, Cubismo, Futurismo, Expressionismo, Dadaísmo, Surrealismo.

Em termos artísticos e culturais, a cidade do Porto sofria, inevitavelmente, um atraso enorme em relação a Lisboa e, muitas vezes, os artistas tinham de penar para conseguir alguma notoriedade e atenção. É certo que o Porto já tinha alguns artistas e instituições de grande notoriedade internacional – casos de Amadeo, Pomar, Resende e a influente “Escola do Porto”, mas raramente o seu trabalho era reconhecido pelos seus pares, muito menos pela crítica especializada, sobretudo ao longo dos séculos XIX e XX. Portugal, como país periférico em relação a Paris e Berlim, também continuava a cultivar uma distância em relação à segunda cidade do país. Em António Cruz tudo foi mais complicado, família de condição humilde e parcos recursos económicos para suportar os estudos do filho; depois, porque o reconhecimento e a notoriedade tardam e quando chega, vem de longe, muitas vezes do exterior; outras em notícias de rodapé.

 

     O Pintor e a Cidade (Short 1956) - IMDb     Gulbenkian: Exposição temporária "António Cruz" - Exposições - Cardápio  O FALCÃO DE JADE: António Cruz, um pintor do Porto, um grande pintor  Português

         

 Cidade romântica

“A cidade com splen, melancolia, elegância e queda, flâneurs, passeios, cafés, vistas, exposições e panoramas, constitui um fenómeno moderno, tal como moderna é a encarnação artística dessa cidade” (Castro, 2012, p.289). E acrescenta: “No entanto, não é essa cidade moderna que Manoel de Oliveira também capta, nem a cidade encoberta das aguarelas de António Cruz que assume particular interesse nesta revisão romântica. A cidade que conta é aquela que se apropria romanticamente dos seus artistas, que os eleva à condição de artistas do Porto, que os identifica com o espírito do lugar, que os coleciona com gosto, que os exibe nos seus interiores, que os empresta generosamente para as exposições retrospectivas e que comparece às efemérides e às homenagens que lhes são dedicadas, que esgota as edições dos seus álbuns”. Um parêntesis para chamar a atenção para um facto: António Carneiro (1900-1971); António Cruz (1907-1983) e António Sampaio (1916-1994) têm vivências românticas e pós-românticas, estão umbilicalmente ligados à pintura e, naturalmente, à “Escola do Porto”.

Outro pormenor importante para contextualizar este tempo: o pensamento da época e “cidade provinciana” também não ajudaram a qualquer sinal de modernidade, mais ainda, quando estamos diante de um pintor independente, avesso ao servilismo e sem a bênção da elite lisboeta. Restou, por isso, no início da sua carreira, o apoio de alguns amigos entre os quais, José Rodrigues, Armando Alves, o editor José Cruz dos Santos que, tudo fizeram para promover o mérito e paixão do artista, antes dos ensaios de aguarela, desenhador nos cafés da Baixa (“Vitória”, na Avenida dos Aliados) e ateliê improvisado num local improvável, antiga Maternidade Júlio Dinis, a poucos metros da Escola onde, em 1920, concluiu o curso de Condutor de Máquinas.

Resumindo: o Porto de António Cruz é o seu Porto. Cosmopolita e, simultaneamente, pouco aberta à modernidade, a tal cidade cinzenta como a mimetizam, desigual em termos sociais e económicos, burguesa e aristocrática para as bandas da Foz do Douro; pobre nas suas entranhas, centenas de ilhas insalubres, um casco antigo a cair de podre, gente a viver em condições indignas na Rua Escura e dos Pelames, pensões de “águas quentes e frias” mais os tascos para dar de “beber à dor”.

Fazendo um “flashback” com a memória, revejo milhares de operários de bicicleta pelas ruas a caminho das grandes unidades empresas da têxtil, fiação, tecidos, fabrico de fósforos (naquele tempo cozinhava-se a carvão, lenha e carqueja) um formigueiro de gente na Ribeira, Miragaia, São Lázaro, Batalha, por instantes cenário de filme neo-realista italiano do pós-guerra, talvez De Sica e o fabuloso “Ladri di Biciclette” (1948).

 

          António (1907) Cruz Paintings & Artwork for Sale | António (1907) Cruz Art  Value Price Guide         Gulbenkian: Exposição temporária "António Cruz" - Exposições - Cardápio

 Percurso estético

António Cruz frequentou a Academia de Belas-Artes do Porto, seguiu-se a exposição dos “Independentes” (1944) no salão do Coliseu do Porto, a bolsa do Instituto de Alta Cultura para estudos de “aperfeiçoamento em aguarela” (Castro, 2015, p. 121) e em 1947, participa na Exposição de Arte Moderna do SNI em Lisboa. O seu nome começa a ser uma referência, suscita curiosidade e admiração, mas só em 1957, ou seja, 10 anos depois, será convidado a mostrar as suas aguarelas na Primeira Exposição de Artes Plásticas, da Fundação Calouste Gulbenkian, por esta altura, séc. XX e certamente durante o XXI, a grande instituição cultural do país, a única com estatuto internacional capaz de produzir e montar grandes exposições de fotografia, pintura, escultura, ourivesaria, joalharia e arte contemporânea.

Em 1958, dois anos após a inolvidável experiência cinematográfica de “O Pintor e a Cidade”, o artista começou a exercer funções como professor na Escola de Artes Decorativas Soares dos Reis e, em 1975, participa na exposição “Levantamento da Arte do Séc. XX no Porto” organizada pelo Centro de Arte Contemporânea, impulsionada pelo crítico Fernando Pernes, no Museu Nacional de Soares dos Reis e mais tarde, na Sociedade Nacional de Belas Artes, em Lisboa.

Porém, o grande momento de glória e reconhecimento público aconteceu em 1982, Casa do Infante/Arquivo Histórico da Cidade, com a celebrada exposição antológica, edição de um luxuoso álbum intitulado “O Pintor e a Cidade” acompanhado da reprodução de 20 aguarelas, um precioso texto de Agustina. O êxito foi enorme. Centenas de visitantes e admiradores, tendo António Cruz conseguido ultrapassar o seu ar austero e distante. A inauguração, então presidida pelo então PR, Ramalho Eanes foi um acontecimento cultural da maior relevância e, desta forma, o Porto chamou as atenções do país para o esquecimento do artista.

Em síntese, a exposição foi um enorme acto cívico e cultural, mas também, um gesto de gratidão e homenagem. Por trágica coincidência, um ano depois, Agosto de 1983, António Cruz morreu na sua casa à Rua dos Castelos, rodeado pelo seu mundo dos desenhos, esboços, pincéis, a eterna caixa de tintas e o cavalete transportado pela cidade imortalizada nas suas aguarelas. Para que conste: em 2023, ou seja, 40 anos após o seu desaparecimento físico, espera-se que a Academia, mas também, os estudiosos e investigadores promovam um encontro destinado a revisitar a sua obra a partir do Porto e, como desenvolveu a aguarela, suas potencialidades estéticas/artísticas e de um modo geral, influenciou muitos jovens alunos e seguidores.

“Quando um pintor sai à rua, no Porto, tem de contar com a luz como moderador das realidades; senão ficava-lhe só o osso da cantaria, os capilares das calçadas onde as pedras marinhas, os dourados que António Cruz sabe encontrar na barra, num dia de sol meio adormecido. E, então, a margem tem a sinistra beleza duma fortaleza onde decorrem dramas e a polvorosa dos destinos” (Agustina, 1982, p. 15).

 

              Silêncios e Memórias: [1758.] ANTÓNIO CRUZ (ANTÓNIO AMADEU CONCEIÇÃO CRUZ)  [I]        ANTÓNIO CRUZ (1907-1983) - Leiloeira Serralves

 No longo e poético texto pontuado de referências imagéticas, bibliográficas e pictóricas, a autora de “A Corte do Norte” compara a pintura Cruz a Turner (Agustina, 1982, p. 17) “talvez em Turner se encontre em grande parte essa paleta que interpreta os fenómenos difusos da luz (…)”para logo classificar como “coloristas” a arte de António Cruz, mas “cuja sensibilidade visual o conduz para uma economia geométrica em favor do acontecimento da luz como criação”.

A questão da classificação estética de “modernista” (Pinto, 2015, p. 10) na obra de António Cruz também esteve subjacente neste ensaio. “António Cruz foi um artista difícil de enquadrar do ponto de vista historiográfico e numa perspectiva de interpretação geral da arte portuguesa do séc. XX. Porquê?”, questionou o crítico e professor de Arte na FABUP: “Primeiro, não foi um “modernista nem jamais o quis ser”, depois, porque foi um aguarelista e “essa indisciplinada liberdade da mão, que a puxava sempre para a dimensão mais lírica, não se arrumava numa disciplinada procura da abstracção como fim em si” e em terceiro lugar, porque foi do Porto, “o que quer dizer que não podia beneficiar dessa função urbi et orbi com que José-Augusto França consagrou como modernistas”.

Resumindo: António Cruz esteve sempre afastado das modas e da crítica de arte lisboeta, fazendo sempre o seu trabalho com a sua luz onírica e mágica do Porto, sacola com o cavalete e caixa de pincéis às costas, circulando a pé ou de eléctrico a caminho do morro da Sé, Mouzinho da Silveira, Flores e Ribeira do Porto e de Gaia, o seu cenário de eleição.

“Ser aguarelista, já que o génio o habitava e a mão era exímia, serviu-lhe para cultivar uma arte desusada sendo nela original sem dar por concorrência que se visse. E ser do Porto valeu-lhe não ter que se medir com intrigas da corte e ao mesmo tempo, beneficiar da luz e névoa de que foi o único sublime retratista”, conclui o professor da FBAUP.

“António Cruz inventou para a cidade uma luz de cobre que, vinda do alto, paira sobre o casario e as águas do Douro, fluindo cheia de vagares para a Foz. Uma luz morna, de brasido amortecido na lareira, de um dia de Outono já friorento e chegar ao fim”, enfatizou o poeta, autor de “A Mão e os Frutos” (Andrade, 2003, p. 25).

“A obra de António Cruz está cheia de traços na paisagem do tempo, objectos nos quais se refletem com clareza o fluir dos dias, os efeitos do clima, as circunstâncias do momento” (Castro, 2012, p. 290) conclui a historiadora de Arte e directora regional de Cultura do Norte.

                                    António Cruz na Gulbenkian - Portal de notícias do Porto. Ponto.

 

 Pinturas em forma de poesia

“António Cruz é o grande aguarelista português do séc. XX, um mestre extraordinário, um orgulho para o Porto”, referiu, ao JN, o pintor José Emídio (Vitorino, 2015, p, 45) presidente da Cooperativa Árvore, no decorrer da exposição levada a efeito na Fundação Calouste Gulbenkian. O mesmo sentimento foi expresso por Ramalho Eanes, ex-PR e desde sempre amigo do pintor portuense. “É o maior aguarelista português e tenho muito orgulho em ser seu amigo. As aguarelas do Porto são pinturas em forma de poesia”, referiu Ramalho Eanes na cerimónia de inauguração da exposição. “A obra do meu pai influenciou-me imenso no meu percurso artístico, nomeadamente, na joalharia tanto nos tons como na luz. Eu cresci com o meu pai a pintar. Foi um artista único, pois conseguiu mostrar o Porto cidade com sentimento, romantismo, clareza e poesia”, resumiu Rosarinho Cruz, filha de António Cruz.

O pintor Manuel De Francesco, professor e antigo presidente do Conselho Directivo da Escola de Artes Decorativas Soares dos Reis (também terminou o curso com 20 valores e faz parte de uma geração de artistas como António Quadros, Eduardo Luís, António Caetano Bronze, Maria Flor Campino) e amigo de António Cruz recorda-o como um “artista sensível e exemplar” (2) e classifica-o como “pintor exímio, extremamente criativo. Soube como ninguém dar um cromatismo muito especial à aguarela. Mas, convém recordar que o pintor também fez incursões à escultura e neste domínio, executou várias obras em bronze. Foi sempre um experimentalista, um homem ávido de conhecimento e pesquisa, estava sempre a desenhar, muitas vezes, com o giz no quadro de sala de aula, outras vezes, nos cadernos com o lápis. Era uma figura carismática”, concluiu Manuel De Francesco.

“Tinha uma conduta muito peculiar e o seu comportamento não é fácil de catalogar. A excentricidade dele era genuína, não tinha o propósito de chocar. Era crítico em relação aos outros e um juiz severo dele próprio”, sintetizou o filho do pintor (Cruz, 2008, JN, p. 59).

 

      O Pintor e a Cidade (1956)     O FALCÃO DE JADE: António Cruz, um pintor do Porto, um grande pintor  Português

 

Reflexão sobre o cinema

No seu regresso ao “plateau”, Oliveira tem 48 anos e vivia frustrado devido à falta de apoios públicos para a concretização dos seus planos. Entre os aplausos de “Aniki-Bobó” (1942) classificado de “realismo mágico e lirismo documental” e “O Pintor e a Cidade” (1956) passam-se 14 longos anos e, por isso, quando surge a hipótese deste DOC, Oliveira não hesitou em pegar na câmara e filmar a sua cidade na companhia do aguarelista. Simultaneamente, aproveitou este desafio para transformar o seu percurso num sinal de mudança e afirmação.

“O Pintor e a Cidade é uma obra fundamental na minha carreira, na mudança da minha reflexão sobre o cinema. Porque essa noção de plano longo, extremamente longo, não fui buscar a nenhum outro filme que conhecia. Não se faziam planos assim, em parte nenhuma do mundo, em nenhuma cinematografia. Em 1956, não se faziam ou eu não os conhecia. (...) realizei um filme sem montagem, a estender -se, a estender--se no tempo em cada uma das tomadas de vista” diz, no longo ensaio académico onde a autora (Oliveira, Anabela Branco, UTAD, 2014, p.522) faz um contraponto entre o cineasta e a cidade.

No mesmo estudo, a investigadora enaltece a linguagem, cenários, arquitectura, o real e o imaginário, as diferentes faces da cidade cinematográfica, suas transformações, modos de sentir e olhar, bem como o seu passado e memórias. “Os espaços reais são cenários e, ao mesmo tempo, sujeitos da própria história. São espaços sociais e culturais escolhidos pelo cineasta onde o imaginário e o real se encontram no espaço do habitável. Em Oliveira, a cidade do Porto apresenta -se, simultaneamente metamorfoseada, desfigurada, por vezes irreconhecível, seletiva e parcial porque é alvo de um olhar cinematográfico. As ruas e os espaços emblemáticos estabelecem a dualidade das representações urbanas. A arquitectura portuense de Oliveira é um espaço de memória e de imaginação na escolha de planos, ritmos e enquadramentos. É um lugar de passagem, de paródia e de fascinação que acolhe, afasta e hierarquiza. O território urbano de Oliveira é um espaço de encontro, de solidão, de pessoas e de edifícios. O seu Porto é imaginário, quimérico, desejado e repelido”. 

 

Pintor António Cruz, o maior aguarelista português   Exposição de Aguarelas, António Cruz - oGuia | Lisboa Porto Desaparecido - António Cruz - “Serra do Pilar”, 1941. António Amadeu  Conceição Cruz, pintor e escultor, nasceu em Cedofeita, no Porto, a 9 de  março de 1907 e faleceu a 29

O mesmo sentimento é plasmado numa entrevista efectuada por ocasião dos 100 anos de Oliveira (Costa, 2008, p. 57) e o onde laureado cineasta diz: “Em O Pintor e a Cidade, a câmara percorre o emaranhado das casas, os detalhes do sino e da rosácea, os planos panorâmicos verticais das igrejas, das estátuas e das janelas. A câmara analisa e recolhe a carga arquitetural da cidade. O pintor olha o rio, os telhados e as roupas a secar fazem o mesmo. O contraste entre o voo dos pássaros e a omnipresença estática da igreja é o contraste entre a imobilidade dos edifícios e o bulício da cidade. Na montagem, esse contraste desaparece e as estátuas apontam, olham e dirigem o movimento das pessoas. O Condestável aponta a liberdade e o movimento dos indivíduos na rua. Na sequência seguinte, o movimento da população é dirigido pelas estátuas. Elas olham e apontam para a esquerda e para a direita, para baixo e para cima e o formigueiro de gente repete o mesmo equilíbrio” .

“O Pintor e a Cidade” também pode ser visto como um poema de ressonâncias musicais e, não por acaso, a sua banda sonora é pautada por música coral polifónica interpretada por “Os Madrigalistas”, do Orfeão do Porto, cujo ambiente e sonoridade, mais os movimentos de câmara ajudam a contextualizar os ambientes, a saída do pintor de casa, bem vistas as coisas, antes, um ateliê frio e esconso, aguarelas inacabadas dependuradas no cavalete, uma sequência panorâmica do Quartel do Carmo da GNR com os soldados montados a cavalo e, por mimetismo, um grupo de miúdos a participar numa espécie de “cortejo militar” no Largo da Igreja dos Grilos, mais a apoteose das multidões no estádio das Antas em contraponto com a saída solitária dos operários dos casebres de madeira nos Guindais a caminho das fábricas de Campanhã.

Retenho outros planos e imagens deste DOC maravilhoso feito de fracos recursos em termos de produção: a majestosa ponte Maria Pia (para nossa vergonha desactivada, à espera de restauro e manutenção), depois, sequências sucessivas dos barqueiros no Douro, os comboios a vapor a chegar à Estação de São Bento, os pregões dos vendedores de cautelas, qual jogo de azar e fortuna, as carroças de hortaliças no Largo de São Domingos, dantes convento com o mesmo nome, os eléctricos nos Clérigos, 31 de Janeiro e Sá da Bandeira, mais os vitrais da Sé e o geometrismo da arquitectura modernista na Batalha, pormenores da Praça da Liberdade com o monumento escultórico do D. Pedro IV, sem esquecer a velhota a acender o fogareiro em Fonte Taurina, as reproduções históricas de Henry Smith das Invasões Francesas e o desastre da “Ponte das Barcas” e baixo-relevo em bronze das “Alminhas da Ponte”, de autoria de Teixeira Lopes.

“O filme começa (Miranda, 2009, p. 58) com uma visão do artista no seu ateliê, a preparar o estojo para pintar na rua, para nos libertar no exterior a deambular com o pintor (e com o realizador) pela cidade do Porto. O pintor, antes de mais, percorre a cidade, descobre-a, escolhe e só depois pinta. Seguindo os passos e o olhar do pintor, Oliveira mostra-nos como a representação solicita a apreciação das coisas de um modo em que o elemento tempo é fundamental, e talvez por isso conceba um filme extremamente contemplativo, com cada tomada de vista a estender-se no tempo longamente. Quando filma, o cineasta não se acha igual ao pintor mas, fortemente sugestionado pelas pinturas de António Cruz, à medida que parte à procura dessas pinturas pelo Porto, vai indagando a sua visão da cidade, que encaixilha nos reflectidos enquadramentos que faz”.

 O FALCÃO DE JADE: António Cruz, um pintor do Porto, um grande pintor  Português  Lote - António Cruz | Bestnet Leilões

 

 Conclusão

A obra de António Cruz é uma paleta cheia de cores, sem dúvida alguma o maior aguarelista do Porto, cujo trajecto artístico demorou imenso a obter o merecido reconhecimento público. Quase 40 anos após a sua morte, a sua arte e aguarelas continuam a suscitar admiração. Ade referir, igualmente, que António Cruz também foi escultor, existem várias esculturas em bronze, nomeadamente, autorretratos e outras peças que ajudam a perceber a constante necessidade de descoberta e experimentalismo de novos materiais e expressões artísticas. “A obra de António Cruz (Castro, 2015, p. 12) está cheia de traços da paisagem do tempo, objectos nos quais se reflectem com clareza o fluir dos dias, os efeitos do clima, as circunstâncias do momento”.

O filme de Oliveira “O Pintor e a Cidade” prolonga no tempo e espaço a paleta policromática da obra de Cruz, dá-lhe outra sonoridade estética e consegue fixar o Porto do aguarelista para sempre. É a simbiose perfeita. Cruz soube, como poucos, interpretar a alma da cidade; Oliveira com a sua câmara mostrou o Porto das pontes e a cidade cheia de neblinas, encantamento e felicidade do pintor.

Observações

Em jeito de rodapé, podemos também referir outra obra que, de certa maneira se cruza com a obra de António Cruz e o filme “O Pintor e a Cidade”. Refiro-me concretamente ao filme de Manoel de Oliveira, “As Pinturas do Meu Irmão Júlio” (1965) um documentário de 15 “ obra dedicada ao artista Júlio Régio, simplesmente conhecido por Júlio na sua vasta obra pictórica, também poeta Saul Dias, irmão do poeta José Régio (1901-1969) onde estão subjacentes as memórias de José Régio, a reconstituição da personalidade do irmão (Júlio) mais as lembranças e memórias da sua casa, mais tarde transformada em Casa Museu José Régio, em Vila do Conde, cujo espaço expositivo reconstitui a convivência das duas personagens, figuras incontornáveis das artes e das letras do séc. XX. Resta acrescentar que José Régio e o seu irmão Júlio foram amigos e cúmplices de Manoel de Oliveira e foi sempre público a admiração do cineasta pelo autor de “Confissões de um Homem Religioso”.

Referências bibliográficas

Cruz, António, (2015). António Cruz/10971983, Exposição na Fundação Calouste Gulbenkian, Edição ASA, Prefácio de Bernardo Pinto de Almeida, coordenação de José Cruz dos Santos, direcção gráfica de Armando Alves.

Castro, Laura, (2012) Na Cidade, no Cinema e na Arte: Carlos Carneiro, António Cruz e António Sampaio/Actas do I Congresso O Porto Romântico, Volume I, coordenação de Gonçalo Vasconcelos e Sousa, edição Universidade Católica Portuguesa, CITAR-Centro de Investigação em Ciência e Tecnologia das Artes da UCP, Porto.

Cruz, António, (1982) O Pintor e a Cidade, 20 Aguarelas sobre a cidade do Porto, Bessa-Luís, Agustina, António Cruz, o Porto, Substância da Realidade”, edição Oiro do Dia/Porto.

Andrade, Eugénio, (2003-2004) António Cruz, O pintor e a cidade, edição Asa.

Almeida, Bernardo Pinto, (2015) António Cruz, 1907-1983, edição Fundação Calouste Gulbenkian/Cooperativa Árvore.

Vitorino, Manuel, Jornal de Notícias (2015) p. 40

Cruz, José Carlos, O Porto de António Cruz no Museu Soares dos Reis, Jornal de Notícias (2008), p. 59

Oliveira, Anabela Branco, O cineasta e a cidade: Manoel de Oliveira e o Porto, UTAD, 2014.

Oliveira, M. Costa, JB (2008), Manoel de Oliveira, Cem Anos-Por Manoel de Oliveira e João Bénard da Costa, Cinemateca Portuguesa/Museu do Cinema.

Miranda, Ana Isabel Fernandes, A Pintura na Obra Fílmica de Manoel de Oliveira, Universidade da Beira Interior, Covilhã, 2009.

Laura Castro, António Cruz, “Tempo, Espaço e Rosto” página 11, edição ASA

Ficha técnica:

O Pintor e a Cidade, 1956, cor, 32 “

Realização/produção/fotografia/montagem: Manoel de Oliveira

Assistente de realização: Lopes Fernandes

Som: Joaquim Amaral e Alfredo Pimentel

Coprodução: Fundação Calouste Gulbenkian

Música: P.e Luís Rodrigues e Rebelo Bonito

Colaboração do Grupo Os Madrigalistas/Orfeão do Porto

Laboratórios: Tóbis Portuguesa

https://www.youtube.com/watch (vídeo do filme O Pintor e a Cidade)

Notas:

1- Entrevista a Manuel Lavrador, in Jornal Sol Nascente, um jornal literário, o mais importante do movimento neorrealista, desde 1937 até aos 40 do séc. XX. Teve como colaborares nomes tão importantes como, Abel Salazar, Mário Dionísio, Manuel da Fonseca, João José Cochofel, Fernando Namora, Joaquim Namorado, Alves Redol, Álvaro Cunhal, Jofre Amaral Nogueira. Colaboração artística de Abel Salazar, Dórdio Gomes, Alvarez, Portinari, entre muitos outros.


 

 

 

 

Comentários