“Estás no sítio certo para ser um Homem”

                                História – Associação do Monte Pedral

                    

Nasci num país onde tudo era literalmente proibido. Um beijo era classificado de “atentado ao pudor”. Jogar à bola na rua um desafio à autoridade. Acender um cigarro só com licença de isqueiro. Empregar o nome do ditador Salazar nem pensar. Só baixinho. “As paredes podem ter ouvidos”, escutei em criança, 6 anos, ainda de calções e sandálias, rosto com “muitas sardas e pestanas enormes”.

A minha mãe Sara da Conceição já tinha frequentado a Escola de Jesus Maria e José, ao Monte Pedral e como católica praticante, rejubilou de contentamento quando a matrícula foi aceite nas “irmãsinhas”, cujas professoras eram conhecidas pela prática de ensino austero, rigoroso e religioso. “Estás no sítio certo para ser um Homem”, avisou. E depois das aulas posso brincar? “Sim, mas só depois dos deveres. Até já arranjei uma senhora amiga [Maria das Dores] para dar-te explicações e ajudar-te naquilo que não souberes”.

Por momentos, pensei: adeus carrinho de rolamentos, jogos da bola no Salgueiros, mais os filmes no Vale Formoso. O foco só podia ser a Escola e os meus passos estavam vigiados: vivia na Rua do Padre José Pacheco do Monte, a cinco minutos da Escola e diariamente, não tinha fuga possível: além das aulas, tinha as explicações da “tia” Maria das Dores, mais as rábulas da catequese, missa aos domingos de manhã, confissões e outras orações. Resumindo: as brincadeiras ficavam no “tinteiro”.

 A exemplo de outras escolas do Estado Novo, não existiam misturas de sexos, convívios: meninas para um lado, rapazes para o outro. Depois, a rigidez educativa, melhor autoritarismo, não deixava lugar a dúvidas: quem não soubesse a lição levava o respectivo castigo com a palmatória dos “5 olhinhos” em cada mão, alguns apertões nas orelhas, outras vezes, de joelhos virados para um canto da sala. Eram as regras da época. No centro da sala, apenas uma secretária para a professora e cadeira; armários nas paredes; o quadro de lousa e giz (os computadores da altura) mais um crucifixo de Cristo ladeado pelas fotografias omnipresentes de Salazar e Américo Tomás. Não é nos bancos de escola que se aprende que o “respeitinho é muito bonito”?

 

 

Procissão, uma festa.

O recreio era outra coisa para enganar meninos, um “escorrega” em cimento armado (onde alguns rompiam os calções…) e quanto a actividades “pedagógicas e culturais” as atenções resumiam-se ao passeio de finalistas e, de vez em quando, à récita de teatro no salão da bonita capela do Menino Jesus de Praga, onde todos os anos, acontecia uma “majestosa procissão”, ruas enfeitadas de flores, milhares de pessoas, banda de música, muitos “anjinhos”, mais alguns rapazes e raparigas com o uniforme da Mocidade Portuguesa. Ainda recordo, com emoção, os meus pais, a baterem palmas ao “puto reguila” vestido a rigor na cerimónia.

E ao recordar a Escola e a Capela do Monte Pedral deixe-me contar um episódio. Apesar da minha pouca afeição para a catequese, confissões, missas e outras orações, aceitei de bom grado ajudar o padre nas “novenas de Maria” celebradas em Maio. Fui acólito ocasional e lá em casa, diziam ser um “milagre” andar tão próximo da Igreja. “O rapaz está muito mudado. Deve estar um santo a cair do altar abaixo”, ouvi enquanto rapaz. Sei uma coisa: a função foi muito bem acolhida pela minha mãe e, como moeda de troca, recebia dois tostões para completar a “colecção zoológica” dos rebuçados Victória. Faz parte das minhas memórias afectivas.

Há tempos, talvez movido pela nostalgia da minha meninice, fui visitar a antiga Rua do Nogueira, mas o tempo mudou. Inexoravelmente. Pelas grades dos portões ainda vi o antigo edifício da Escola (cujo Centro Comunitário do Monte Pedral presta relevantes serviços à comunidade) mas a Capela revestida de bonitos azulejos e onde fui “menino de coro” está fechada ao culto há vários anos. E ninguém soube responder a razão. Talvez o Altíssimo saiba explicar o mistério…

“Lei e ordem”

 

Em finais do anos 50 do século passado, o país era considerado um dos mais atrasados da Europa, elevados índices de analfabetismo, saber ler e escrever um luxo, a taxa de mortalidade infantil altíssima e a maior parte dos bebés morriam à nascença. No Porto, a maior parte da população vivia em condições sub-humanas sem água canalizada, electricidade, esgotos. Na ilha onde nasci, estudei à luz do candeeiro a petróleo e a minha mãe cozinhava num fogão de carvão. O Portugal de Salazar assente na trilogia “Deus, Pátria e Autoridade” era tudo isto e muito mais, um país governado em Ditadura, polícia política da PIDE a mandar para a prisão quem não seguisse a “lei e a ordem” impostas pelo Estado Novo. Os tambores da guerra colonial já se ouviam em África (foi no início dos anos 60 que tudo começou) com milhares de jovens obrigados a partir “rapidamente e em força” para as três frentes de batalha.

E foi neste contexto histórico, político e cultural, que o aluno das irmãs Luísa, Consoladora e Nazaré lá conseguiu fazer a 4ª classe (sem grande esforço, diga-se) e para meu espanto, várias vezes distinguido com a medalha de “bom aproveitamento” (uma alegria enorme para os meus pais) e depois a comunhão solene na capela do Carvalhido, mais o exame de admissão à Escola Técnica e Elementar Gomes Teixeira.

Depois, o “aluno exemplar” tornou-se rebelde, cresceu,  ganhou consciência social e política do país em que nasceu e jamais esqueceu a miséria e fome da maioria da população, exploração, falta de liberdades cívicas, políticas e culturais, “eleições” promovidas pela Ditadura, mais a agitação provocada no Porto com a chegada do general Humberto Delgado (14 de Maio de 1959) candidato pela Oposição Democrática ao cargo de Presidente da República.

Para trás ficaram as memórias da sala de aula onde aprendi as primeiras letras do abc da vida,   o sentimento de eterna gratidão aos meus pais por terem optado em colocar o filho na Escola Primária de Jesus, Maria e José, sempre considerada como uma “escola de excelência”, onde se misturavam meninos pobres com filhos de gente rica (o menino Cortês chegava sempre de carro conduzido por motorista…) e onde o rigor, disciplina e religião faziam parte da cartilha educativa.

Como preservo a memória desses tempos e lugares, deixo para o fim os sons das sirenes das fábricas a avisar os operários (sim, na segunda metade do século XX ainda existiam operários…) para entrarem nas grandes empresas da indústria têxtil e metalomecânica, milhares de homens e mulheres de marmita na mão a circular de bicicleta, um formigueiro de gente a lutar pela vida.

Muitos anos depois, revejo “Ladrões de Bicicletas” (1948), de Vittorio de Sica, uma obra-prima do neo-realismo italiano do pós-guerra e as semelhanças com o Porto dos anos 50 não são mera ficção, antes uma dolorosa realidade. A Escola foi sempre o reflexo e espelho da sociedade em que vives e estás inserido.


 

 

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