“O Arquitecto e a Cidade Velha”

 

 O Arquitecto e a Cidade Velha @ CinePT-Cinema Portugues [pt]   O Arquitecto e a Cidade Velha - Filmes


Existe um cinema antes e depois de “O Arquitecto e a Cidade Velha” (2003) onde a cineasta e antropóloga Catarina Alves Costa realiza juntamente com Álvaro Siza Vieira e que visa promover a recuperação da pequena Cidade Velha, situada na ilha de Santiago, em Cabo Verde. Comecemos por este DOC, 72 minutos, exibido durante o Family Film Project (22 de Outubro de 2022) feito em condições difíceis, orçamento reduzido, com espaços longos no tempo e nas filmagens (demorou cinco longos anos a concluir) destinada à candidatura de Património Mundial da UNESCO.

Percebe-se o interesse da cineasta e do laureado arquitecto nesta cidade, um sítio histórico dantes chamado Ribeira Grande, uma vez que, foi a primeira cidade fundada em Cabo Verde pelos portugueses em 1462. Catarina sempre trabalhou neste tipo de comunidades e o seu foco de interesse tem muito ver com as raízes de um povo, suas culturas, tradições, modo de observar o mundo e as coisas. É um cinema feito à margem dos grandes temas das sociedades, mas sempre com a preocupação de trazer à superfície o pulsar de comunidades (sejam em África, ou em Portugal) que vivem longe dos holofotes, mas onde subsiste memória, culturas, uma grande riqueza histórica, etnográfica, antropológica.

O projecto de recuperação deste espaço urbano, rodeado de casas de frágil construção, telhados de palha ou colmo, ruas em terra batida, onde os animais domésticos e outras espécies convivem com os habitantes suscita, naturalmente, grandes expectativas que, sonha há vários anos por casas condignas e melhorias na sua condição de vida.  Que cidade queremos construir? Manter tudo como está, reabilitar, “modernizar” ou mudar a “patine” e transformar a “cidade velha” e com camadas de história, numa outra sem respeito pelos valores patrimoniais e culturais?

O filme navega entre uma certa ambiguidade narrativa e poética, mas é um testemunho muito bem concebido sobre o pulsar de uma determinada comunidade, seus anseios e realizações, direito à opinião. “Eu gostava de ter telhas no telhado em vez de palha. Se existe um incêndio, como vai ser “? pergunta outro morador. Siza, puxa do cigarro e responde: “Não há incêndios”, diz. E já dentro da casa solta, olha para o interior do telhado e fica encantado diante do rendilhado das tiras geométricas de colmo: “Isto é muito bonito”. Entre a tradição e a modernidade, o arquitecto opta, claramente, por respeitar os materiais antigos e marca identitária da paisagem urbana.

O filme remete-nos para a noção de “habitat”, leia-se também, espaço de sociabilidade e fruição como fundamentais para o bem-estar de uma comunidade que, desde sempre, costuma viver com muito pouco, basta peixe à mesa (e em Cabo Verde os mares costumam ser generosos) e a maioria das quais, alimenta-se daquilo que a Natureza costuma oferecer, fruta, muita fruta, saborosas bananas, mangas e papaias.

Mas, têm, naturalmente, expectativas quanto ao futuro. Entre o galo a cantar e o som provocado pelas ondas do mar, retenho um diálogo curioso entre Siza e uma moradora: “Esta cidade vai ficar melhor”, aponta o arquitecto. “Para nós é bom. Pode trazer mais turistas”, sintetiza a habitante da Cidade Velha.

Ou seja, além da reconstrução das casas na cidade histórica e a possível miragem de mais visitantes e outra atractividade em Cabo Verde, estavam subjacentes nesta mensagem outras fontes de receita, porventura algum desenvolvimento, melhorias na economia do país, uma minúscula ilha no meio do Atlântico, mas que todos aos anos, atrai turistas de todo o Mundo ávidos de conhecer outros estilos de vida e culturas. Por aqui, poderá não existir o conforto e a Internet, mas existe um “mar azul/subi mansinho/ lua cheia lumiam caminho”, a voz única e César Évora, mornas, “coladeiras” e um povo caloroso, afável, humilde e alegria contagiante.

 

 

Family Film Project   Catarina Alves Costa - SAPO Mag   Family Film Project

 

Cruzamento de olhares

 

Abordei, ainda que sucintamente, “O Arquitecto e a Cidade Velha” , mas importa enfatizar outros filmes realizados à “posteriori” como sejam, “Regresso à Terra” (1992); “Senhora Aparecida” (1994); “O Linho é um Sonho”, mais “A Seda é um Mistério” (ambos feitos em 2003) com a colaboração de Benjamim Pereira, etnólogo e consultor científico de Catarina; depois, “Falemos de António Campos” (2009) testemunho e homenagem ao grande mestre do cinema antropológico, “Casas para o Povo” (2010) e “Viagem ao Povo Makonde” (2019) que, três anos depois, a cineasta retoma em “Margot” (2022) ou seja, o regresso a Moçambique serve para filmar as culturas do povo Makonde e também, homenagear Margot Dias, pianista, antropóloga, apaixonada pelas culturas locais.

Na “masterclass” orientada por Catarina Alves Costa, a cineasta abordou, ainda que sucintamente, o cinema etnográfico e documental, mas também os estilos cinematográficos, a procura de uma linguagem e estética. E centrou o seu pensamento no “Encantamento, Exploração e Descoberta: Processos de Filmar no cruzamento da Arte com a Antropologia”. Porém, como quase tudo acontece “Ao Correr do Tempo” (WW) e no terreno, a cineasta falou das primeiras experiências levadas a efeito, a mais conhecida das quais, “Regresso à Terra” (1992) as dificuldades encontradas durante a rodagem, os imprevistos, o modo como parte do script para a realização e montagem. “O cinema faz parte da vida” , disse-me, durante a longa entrevista concedida no Cinema Trindade, no decorrer do Family  Film Project.

“O facto de termos uma câmara coloca-nos numa posição de reflexão sobre o mundo que não temos caso não estivesse a olhar através daquele mecanismo. Quando estou a filmar tenho uma atenção especial às coisas que interessam e que eu julgo que podem fazer parte da história que estou a contar”, ou seja, o seu posicionamento e modo de captar uma determinada realidade, uma procissão numa aldeia, um ritual numa determinada comunidade local, suas culturas e tradições, assumem outras responsabilidades perante as narrativas visuais que a câmara vai filmando e registando. Ou ainda: “O que me atrai particularmente é o que está a acontecer à frente da câmara, é mais importante para as pessoas que o facto de estarem a ser filmadas. A acção não anda em torno de uma câmara, um microfone, uma equipa. O que está a acontecer ali anda em torno da vida que as pessoas estão a viver. Por isso, não podemos filmar numa posição oculta ou imparcial. Temos de ter uma presença real dentro da acção, mas isso não é o mais relevante. Foi o que aconteceu em “Senhora Aparecida”. Aquilo ultrapassou completamente tudo e o que ali aconteceu foi um conflito entre uma comunidade e um padre. E nós andámos atrás do acontecimento. Estávamos a filmar com o devir da vida”.

 

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