“O Cinema faz parte da vida”

Em véspera da apresentação no MDOC, do filme “Margot”, de Catarina Alves Costa, falamos com a professora e realizadora, autora de vários registos, entre os quais, “Senhora da Aparecida” (1994); “O Arquitecto e a Cidade Velha” (2004); “Pedra e Cal” (2016) e “Um Ramadão em Lisboa” (2019), além de autora de diversas investigações e livros “Cinema e Povo” (2022). O seu trabalho tem sido reconhecido e premiado em vários certames nacionais e internacionais. Entrevista conduzida pelo jornalista Manuel Vitorino.

Catarina Alves Costa

Foto: professora e cineasta Catarina Alves Costa. Foto © Site Nova FCSH

 

7M- O facto de teres nascido no Porto e oriunda de uma família ligada às artes influenciou a tua ligação ao cinema, ou nem por isso?

Catarina Alves Costa (CAC)- Tive uma grande relação com o meu avô [Henrique Alves Costa], que era cineclubista, mas foi sempre uma relação de avô-neta. O cinema fazia parte do nosso dia-a-dia, ambos iam ao cinema, mais para encontrar os amigos ou porque conhecíamos alguns realizadores. Era uma relação muito banal. Só muito mais tarde percebi o impacto que essa infância e juventude tiveram em mim. Só nessa altura percebi a existência de uma ligação muito considerável com o cinema, sobretudo como espectadora.

7M- E só depois veio o teatro e o ensino da antropologia…

CAC- Exactamente. Só posteriormente fiz outras coisas, teatro, depois fui actriz, mais tarde, estudei Antropologia, logo a seguir o Mestrado em Artes Visuais e, por esta altura, começo a perceber a relação com o meu gosto pelo cinema e a possibilidade de esse ser o meu caminho.

7M- Deixa-me voltar um pouco atrás para colocar outra questão: o facto do teu pai, Alexandre Alves Costa, ser arquitecto e professor na antiga Escola Superior de Belas- Artes do Porto, hoje FBAP, também contribuiu para transmitir uma nova estética e uma nova perspetiva de olhar para a cidade?

CAC- Sim, claro. Cresci no meio de pessoas que estavam a estudar e a ensinar nas Belas-Artes mas, não tinha muita consciência desse facto. Estava muito mais ligada aos livros do que às artes. Não me sentia uma artista no sentido literal do termo. Nunca tive essa fantasia…

7M- E quais foram os filmes que marcaram nessa fase?

CAC- Nesta época foi sem dúvida o cinema italiano neo-realista do pós-guerra, os documentários do PREC [Processo Revolucionário Em Curso], produzidos logo a seguir ao 25 de Abril, mais o Antonioni. Lembro-me do primeiro filme que vi “O Mistério de Oberwald” e, para mim, foi uma revolução técnica muito marcante. Cheguei a criar uma relação com alguns cineastas, como por exemplo, Éric Rohmer, um realizador que aborda muito o cinema com os adolescentes.

7M- E Godard também fazia as tuas delícias?

CAC-Mais ou menos. Não foi fácil entrar na sua obra…(risos)

 

Representar o país nas margens

 

Mulher. Aldeia isolada de Serra d'Água

Imagem do filme “Regresso à Terra” de Catarina Alves Costa.

7M- O que te fez enveredar pelo cinema? Foi o contexto político do pós-25 de Abril que criou esse impulso?

CAC- Não, não. O meu primeiro filme [“Regresso à Terra”] foi rodado muitos anos depois, em 1992 e o impulso que senti foi tentar mostrar e representar um país que tinha ficado à margem, um pouco de fora desse olhar, nomeadamente, a questão colonial. Por exemplo, filmei “Um Ramadão em Lisboa” (2019) depois, em Moçambique, outras vezes, nas aldeias de Portugal. Em todos os lugares, procurei trazer a palavra das pessoas e as suas ideias.

7M- Ou seja, se não fosses cineasta e antropóloga, talvez a tua visão do mundo fosse outra. O teu olhar e experiência visual coloca-te mais perto das pessoas?

CAC- Sim, sem dúvida. O facto de termos uma câmara, coloca-nos numa posição de reflexão sobre o mundo que não temos, caso não estivesse a olhar através daquele mecanismo.

Quando estou a filmar tenho uma atenção especial às coisas que interessam e que eu julgo que podem fazer parte da história que estou a contar. O cinema faz parte da vida. É uma espécie de reforço com o mundo, as pessoas, as suas paisagens, sonoridades e lugares. Atrai-me muito o que está a acontecer à frente da câmara.

7M- Disseste que procuras filmar quando já tens uma história consolidada, um “script” feito ao detalhe ou partes à procura de um assunto?

CAC- O que me atrai particularmente é o que está a acontecer à frente da câmara, é mais importante para as pessoas que o facto de estarem a ser filmadas. A acção não anda em torno de uma câmara, um microfone, uma equipa. O que está a acontecer ali anda em torno da vida que as pessoas estão a viver. Por isso, não podemos filmar numa posição oculta ou imparcial. Temos de ter uma presença real dentro da acção, mas isso não é o mais relevante. Foi o que aconteceu em “Senhora Aparecida”. Aquilo ultrapassou completamente tudo e o que ali aconteceu foi um conflito entre uma comunidade e um  padre. E nós andámos atrás do acontecimento. Estávamos a filmar com o devir da vida. Foi a primeira vez que tive a possibilidade de trabalhar com uma equipa séria. Tinha 26 anos e não foi fácil criar uma interação com as pessoas mas felizmente consegui encontrar um director de fotografia maravilhoso, o José Luís Carvalhosa e tive a sorte, também, de trabalhar com um produtor fantástico, o Pedro Martins. Mas pode ter sido sorte de principiante…

O mundo rural de Giacometti

Michel Giacometti

Foto: Michel Giacometti © Site Festival Giacometti \ Ferreira do Alentejo

 

7M- Tanto no filme “Em Pedra e Cal” como em “Regresso à Terra”, as pessoas sobrevivem no limiar da pobreza e encontram-se num isolamento profundo. Por vezes, faz-nos lembrar os registos etnográficos do Michael Giacometti, mas esse país já não existe e ao longo dos anos, sofreu imensas transformações sociológicas, culturais, novos hábitos de vida. O que pensas do assunto?

CAC- É uma boa questão, mas vivemos num mundo complexo e se calhar, o mundo rural que existiu no tempo do Giacometti já não existe. Não sei. Tenho algum trabalho feito no meu livro, “O Cinema e o Povo”, sobre essa procura do cinema dos 60 e 70 de procura do povo, com realizadores muito fascinados por essa estética. Filmei a “Senhora Aparecida” num meio industrial, depois, “Regresso à Terra” numa aldeia mas olhando para os jovens citadinos. Interessa-me esses domínios, em que trago a contemporaneidade para a vida tradicional, em vez de imaginar que tudo está numa redoma, interessa-me a transformação. Mesmo em Cabo Verde, na “Cidade Velha”, também houve a ideia de que quem vive lá querer viver em casas modernas. O Siza tinha outro tipo de expectativa, pois veio de um universo ocidental e artístico. Nessa altura, Paulo Varela Gomes escreveu um texto onde diz que “O Arquitecto e a Cidade Velha” é o retrato terno do falhanço. É um projeto que o Siza não consegue agarrar e ao longo de quatro anos filmámos esses problemas.

7M- Tens um particular fascínio pela obra de António Campos…

CAC – Como tenho, igualmente, apreço pela obra do António Reis, ou do Manuel Costa Silva e da Noémia Delgado que estão pouco divulgadas. O António Campos merecia mesmo uma importante colectânea. Sei que existe um excelente catálogo [Cinemateca Portuguesa] mas a sua filmografia é notável. O que mais me interessou foi a pessoa atrás da câmara e fui à procura de algumas pistas para tentar perceber a sua vida que, como se sabe, não fazia parte da elite lisboeta e como tal, condicionou o seu percurso.

7M- Jean Rouch influenciou-te no modo como usas a câmara de filmar, ou nem por isso?

CAC- Sinto-me um bocado distante da obra do Rouch. Abordo muito a sua obra nas aulas da Universidade mas não influenciou diretamente o meu percurso. O meu trabalho talvez tenha sido mais influenciado por realizadores contemporâneos do filme etnográfico americano…

7M- Como Frederick Wiseman?

-Acho fabuloso o seu trabalho, mas tenho outras referências. Por exemplo, o “cinema directo” norte-americano exerceu uma grande influência, pois conseguimos entrar nos bastidores da vida das pessoas e captamos a sua alma, mais a possibilidade de verbalizar as suas esperanças e angústias.

 Regressar a África

 

Fotografia de apresentação do filme “Margot”, da cineasta Catarina Alves Costa

 

7M- Temos mais um filme, “Margot” e de certa forma é também um regresso a África, mais concretamente a Moçambique. Queres falar um pouco desse filme?

CAC- Foi um filme que comecei a trabalhar há muitos anos, ainda quando trabalhava no Museu de Etnologia, então dirigido por Joaquim Pais de Brito e surgiu a ideia de fazer um guia dos filmes da Margot Dias. Nesta altura, conheci o trabalho dela e nunca mais deixei de pensar no assunto. Sonorizei para um DVD os seus arquivos para a Cinemateca e a ideia do filme foi surgindo. Já sabia tantas coisas sobre aquela história.

7M- Como foi o teu encontro com Margot Dias, pianista, depois investigadora, antropóloga…

CAC- Foi uma pessoa com uma capacidade enorme para mudar a sua vida já numa fase madura. Foi inicialmente pianista e começou a dedicar-se à Antropologia quando conheceu Jorge Dias. Era uma pessoa muito fascinada por África. O filme conta um pouco a história do trabalho destes investigadores durante a guerra colonial, onde se cruzavam personagens complexas e não tanto os bons e os maus. Ela filmou o povo da etnia “Makonde”, no Norte de Moçambique e procurei ir à procura da forma como essas pessoas olham para esta história. É um filme com várias camadas e muito pessoal. Também entro no filme…

 


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