“Qualquer Coisa de Belo”


“Gosto de documentar aquilo que vejo”, recorda o médico e fotógrafo José Fontes, no decorrer da curta-metragem “Qualquer Coisa de Belo” (2017) realizada por Pedro Sedas Nunes, cineasta, professor, investigador, autor de uma vasta filmografia, impulsionador das artes visuais.

Retenho imagens deste DOC pungente, com momentos de grande beleza, cruzamento de olhares e narrativas, onde a fotografia e o cinema coexistem num espaço concentracionário, dantes cheio de gente, doentes, médicos, enfermeiros e outros auxiliares, cuja missão consistia em tratar os doentes do foro psiquiátrico. Trata-se do Hospital Miguel Bombarda, em Lisboa, nos anos 60, uma unidade de saúde por sua natureza e funcionalidade, pouco aberta à comunidade e, este pormenor, remete-nos, inevitavelmente, para um país fechado, “orgulhosamente só”, onde todos estavam reféns de um regime (Ditadura) concentracionário em termos espaciais, mas também sociais, políticos, culturais. O hospital será, em termos imagéticos, o espelho de uma sociedade datada, com os seus códigos da época e onde os doentes portadores deste tipo de patologias eram, geralmente, mal vistos, hostilizados, colocados à margem, muitas vezes, ao abandono, alvo de torturas e sevícias impensáveis. Sim, neste tipo de unidades psiquiátricas, muitos doentes começavam por ser abandonados pelas famílias; depois, tratados como “malucos”, outras vezes, sedados para não perturbarem a paz e a “ordem estabelecida” dentro destes espaços, outras apelidados como vulgares “criminosos".

A exemplo de Lisboa, existe no Porto, em funcionamento o Hospital Psiquiátrico de Conde Ferreira (curiosamente,  construído por um mecenas, antigo mercador de escravos…) com dezenas de doentes portadores de diversas patologias, na sua maioria, ligadas aos problemas da saúde mental e psiquiátrica. Muitos deles, vivem há vários anos, abandonados e em condições degradantes, entregues a si próprios, medicados, outras vezes sedados, nem sempre tratados como deviam e apelidados das maiores ignomínias, sobretudo, nas décadas de 60/70 do séc. XX.

As práticas clínicas também deixavam muito a desejar mas, felizmente, existiu por parte de um pequeno grupo de médicos, a ideia de recolher, conservar e documentar, uma parte do acervo histórico médico. E assim, foi possível formar um pequeno museu, um núcleo museológico composto por documentação, bibliografia,  objectos, textos, material cirúrgico, como as famosas “camisas-de-forças”, autênticas “câmaras de torturas” impostas aos doentes com fortes perturbações psicóticas. Este pormenor, poderá ajudar a contextualizar o ambiente deste espaços de tratamento psiquiátrico.

Porém, a exemplo do que sucedeu um pouco por toda a Europa e em Portugal também, os grandes hospitais deste tipo ocupavam enormes quarteirões urbanos e ao longo dos anos, foram sendo abandonados, muitas vezes grafitados, destruídos. Ficaram as memórias, neste caso, uma colecção fabulosa de fotografias composta por mais de 500 imagens a preto e branco que, pacientemente e por paixão à fotografia, um médico desta unidade hospitalar foi fixando, dia após dia, os corredores abandonados, as camas dos doentes, rostos, muitos rostos captados por uma câmara (de fotografia) atenta e sensível.

E com este material fotográfico o cineasta Pedro Sena Nunes começa a montar um documentário fílmico,  imagens em movimento, selecionado fotogramas, construindo uma narrativa visual e estética que, não deixa de intrigar e surpreender o espectador. “As máquinas são aquilo que nós queremos que sejam”, recorda o fotógrafo (e médico) José Fontes ao longo de “Qualquer Coisa de Belo” para logo apelar aos sentimentos, ou seja, ”aquilo que nos vai na alma”.

No meio daquele labirinto, corredores infinitos, o espectador mais atento irá reparar no maravilhoso cartaz  do filme “Jaime” (1974) obra cinematográfica da dupla António Reis/Margarida Cordeiro, muito mais do que um simples cartaz, antes um desenho de Jaime e homenagem ao trabalhador rural com alma de artista, também ele demente e internado no Hospital Miguel Bombarda (onde a mulher de António Reis exerceu funções de médica psiquiátrica) e que, com rara imaginação desenhava com enorme força e capacidade criativa.

No final deste DOC será, inevitável,  confrontar o espectador sobre os tempos de infortúnio de milhares de doentes, o modo e circunstância como foram tratados e como conseguiram sobreviver ao longo dos dias, semanas, meses e anos. Será, por certo, um bom exercício com a memória inegavelmente documentado em “Qualquer Coisa de Belo”.

  

 

 

 

 

 

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