Festival de Melgaço: Um filme “leve e subtil” sobre o Brexit conquistou o MDOC

Four Seasons in a Day

Four Seasons in a Day

 

O documentário Four Seasons in a Day (Quatro Estações Num só Dia), da cineasta belga Annabel Verbeke, foi o vencedor do prémio Jean-Loup Passek do MDOC/Festival Internacional de Documentário de Melgaço que terminou este domingo nesta vila de fronteira do Alto Minho. O filme relata a vida dos habitantes de uma ilha obrigados à travessia de ferry entre a Irlanda e a Irlanda do Norte e à primeira vista, tudo desagua nas consequências impostas pelo Brexit, a saída da Inglaterra da União Europeia. Mas é muito mais do que isso. Segundo o júri do festival, o documentário também pode ser visto como “Um retrato bem-humorado, leve e subtil sobre um povo preso entre fronteiras invisíveis e visíveis contra o pano de fundo da ansiedade latente da realidade política de hoje, com referências ao passado sangrento e ao que ainda está por vir, numa bela paisagem”.

Por seu turno, No Táxi do Jack (2021) de Susana Nobre, conquistou o prémio de Melhor Documentário Português, cujo tema é bastante acutilante nos tempos que correm, ou seja, Joaquim, um homem de 63 anos e quase à beira da reforma, é obrigado a cumprir uma série de burocracias incríveis e obsoletas impostas pela Segurança Social para, em troca, continuar a ter direito ao subsídio de desemprego, carimbos e mais carimbos de empresas na sua incessante busca de emprego. Pela maneira como o filme é construído – a ficção mistura-se com a realidade – percebe-se que o antigo emigrante fica sem esperança e só resta arranjar subsistência num lugar onde já foi feliz, nos EUA onde, em Nova Iorque, trabalhou como motorista de táxi. O filme já foi estreado no Festival de Berlim e as filmagens decorreram em duas geografias completamente opostas: entre Nova Iorque e Alhandra a dois passos de Vila Franca de Xira, onde curiosamente, Joaquim encontrou um trabalho de curta duração através do programa “Novas Oportunidades”.

No Táxi do Jack

No Táxi do Jack

 

A outra menção honrosa do júri foi atribuída ao documentário Alcindo (2021) de Miguel Dores, cujo script parte da história do homicídio de Alcindo Monteiro, dia 10 de Junho de 1995 (“Dia da Raça” e futebol à mistura) quando um bando de nazis (“cabeças rapadas”) consegue espancar em pleno Bairro Alto, em Lisboa e sem policiamento por perto, uma série de 11 pessoas cujo único crime foi serem africanos e estarem no sítio errado à hora errada. Alcindo é visto nas proximidades da Rua Garrett, sendo agredido e torturado até à morte, tendo a PJ detectado mais tarde, nas botas de um “cabeça rapada” vestígios de sangue e cabelos da vítima. O documentário é também um grito de denúncia e de combate contra o racismo. Ao saber do prémio, Miguel Dores contou ao 7MARGENS a sua alegria por ter recebido mais um galardão. “Estou muito contente e confesso que não esperava este prémio. Não tenho a pretensão de ganhar prémios, mas fico satisfeito pelo reconhecimento do trabalho, mais ainda, por ser num festival que faz um trabalho importante na descentralização e tem como mote as questões ligadas à Identidade, Memória e Fronteira.”

Alcindo já ganhou o Prémio do Público no DOC Lisboa (2021), melhor DOC e o Grande Prémio no Festival Caminhos do Cinema Português, em Coimbra, e em outros certames nacionais e estrangeiros, como foram os casos de Londres e Barcelona. Em Outubro, prevê-se a sua exibição no circuito comercial, nomeadamente, no Porto.

Alcindo

Alcindo

 

Outros prémios: Subtotals, do iraniano Mohammadreza Farzad, recebeu o prémio de Melhor Curta-Metragem (competição principal) e para muitos constitui uma novidade absoluta. Farzad nasceu no Irão, foi aluno de  Béla Tarr, o famoso cineasta húngaro autor de filmes fabulosos, como O Cavalo de Turim (2011) dá conta de pequenos detalhes, gestos de famílias iranianas e utiliza na montagem fragmentos de pequenos filmes caseiros sem recursos à tecnologia digital. O júri não teve dúvidas em estar diante de “um estudo poético e assombroso sobre a vida, o amor e os mistérios do tempo; uma meditação existencial composta por filmagens caseiras de 8 mm que nos dão um vislumbre da vida das pessoas comuns. Ficamos hipnotizados pelo fluxo das imagens e pela clareza da imaginação, as certezas incertas de uma vida que não dá contas. Uma bela advertência de todas as pequenas e grandes coisas que experimentamos na vida e que não registamos ou nem sequer notamos”.

Ainda nesta secção, a Menção Honrosa foi entregue a Eliane Esther Bots, por In Flow of Words (No fluxo das palavras) sobre três intérpretes do Tribunal Penal Internacional para a antiga Jugoslávia, num registo onde “traduziram depoimentos chocantes de testemunhas, vítimas e criminosos, sem nunca permitirem que as suas próprias emoções, sentimentos e histórias pessoais se manifestem”. O filme também ganhou o Prémio D. Quixote de Melhor Curta-Metragem, atribuído pela Federação Internacional de Cineclubes. Ainda nesta secção, sublinhe-se o prémio de Melhor-Longa Metragem atribuído a Heza, de Derya Deniz, um testemunho dramático e comovente como uma mulher Yazidi, raptada, violada e traficada pelo grupo terrorista Estado Islâmico, no Iraque, conseguiu libertar-se do terror e agora, contar ao mundo os massacres da organização terrorista mais perigosa do Mundo. Como ainda é possível esta monstruosidade acontecer no séc. XXI? 

Nesta oitava edição do MDOC foram selecionados 32 filmes candidatos ao prémio Jean-Loup Passek e ao Prémio D. Quixote que, de uma maneira ou outra “reflectem o ponto de vista dos autores sobre questões sociais, individuais e culturais relacionadas com a Identidade, Memória e Fronteira”. 

Entretanto, o dia de domingo voltou a ser bastante intenso: logo pela manhã, às 10 horas, a expectativa foi enorme, pois foi admirado na secção X-RAYDOC, um filme raramente visto, Cabra Marcado para Morrer (1984) do documentarista brasileiro Eduardo Coutinho, seguindo-se uma interessante conversa debate com Jorge Campos e Luís Mendonça; e durante a tarde, mais filmes a concurso. Para terminar em beleza, decorreu mais uma sessão de cinema, desta vez ao ar livre, 22 horas, na Torre do Castelo, com o filme Dispersos pelo Centro, de António Aleixo. 

Para o ano há mais. O Festival está vivo e recomenda-se.  

 

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