A Arte salvou Cerveira e Bilbao

 

Mais de 200 obras vão estar em exposição na Bienal de Arte de Cerveira


Portugal ainda não assumiu de uma forma consistente a importância de uma política cultural virada para o futuro e com uma estratégia a longo prazo. Ou seja, a Cultura entendida como elemento de coesão e modernização das cidades e das pessoas, sobretudo, daqueles que vivem na “província”, continua muitas vezes inacessível, outras vezes, sem um projecto, programação, continuidade. Existem muitas “casas de cultura” e pavilhões espalhadas pelo país, mas falta-lhes equipas, muitas vezes, uma equipa dirigente com conhecimento e capacidade de gizar um programa susceptível de provocar atractividade e entusiasmo no tecido local. Por isso, não admira que, em muitos casos, a cultura e a modernidade sejam uma miragem. Mais ainda, quando se fazem aproximações com outras geografias.

Aqui, as assimetrias assumem outros valores quando comparados com os países da União Europeia quer seja na música, no cinema, na pintura, na ópera, nas artes performativas. Apesar dos avanços significativos registados em quase 50 anos de Democracia, o Orçamento de Estado (OE) continua abaixo do esperado e quando se chega à repartição do bolo o tema costuma ser utilizado de forma demagógica, discutido sem racionalidade e profundidade, num binómio despesa/investimento, muitas vezes, sem ter em conta a importância dos projectos culturais na modernização do tecido urbano e os impactos positivos na economia, comércio e turismo.

Senão vejamos: “O Orçamento da Cultura cresce 23%, mas o peso no bolo total da despesa mantém-se aquém dos 0,5%. A despesa total consolidada da Cultura deverá crescer 140,9 milhões de euros, segundo a proposta de Orçamento de Estado (OE) para 2023: serão ao todo 760,3 milhões de euros, RTP incluída, o que representa um aumento de 23% em relação à previsão orçamental para 2022, que se fixou em 619,4 milhões. Mas, olhando para o bolo geral do Estado, a área da cultura continua a representar apenas 0,43% da despesa total consolidada da administração central (há um ano não chegava aos 0,3%), muito longe da mítica meta de 1% do OE”. (Público, Dezº, 2022).

Chegados aqui importa referir um facto da maior importância para melhor se compreender este atraso estrutural, mas também de mentalidades e opções políticas, tendo como já foi referido anteriormente como fronteira temporal o derrube da Ditadura, em 25 de Abril de 1974, pois foi a partir desta data que o país conquistou a Liberdade e a Democracia e, concomitantemente, o acesso à Cultura. Um pormenor: Portugal assinou em 1972, ou seja, dois anos antes da Revolução, a Convenção para a Proteção do Património Mundial Cultural e Natural.

Porém, só a partir de 2001, com a Declaração Universal de Diversidade Cultural da UNESCO “a cultura é assumida como um elemento intrínseco à dignidade humana, pelo que a consideração culmina na cultura como dinâmica estruturante dos direitos humanos. Contemporaneamente, o papel dos Estados signatários no sector formula-se em torno dos consensos internacionais. Com o estabelecimento da atividade administrativa democrática em Portugal, as políticas públicas culturais mutam-se em torno destes consensos sem, contudo, descorar as especificidades nacionais. Neste sentido, reconhecendo o Estado como principal administrador do sector cultural e, assim, do património cultural, o desenvolvimento e atual situação das políticas públicas culturais é paralelo ao dos próprios sistemas políticos”. (Mesquita, Tomás Martins, ISCTE, 2015)

 

Pese embora as dificuldades no modo de concretizar uma política cultural consentânea com as necessidades e o pulsar das populações existem alguns casos de sucesso no país, “cidades criativas” que souberam dinamizar o território, seja através das câmaras municipais que, atempadamente, souberam recorrer aos fundos comunitários destinados à reabilitação urbana, bem como de outros programas financiados pela União Europeia destinados à preservação do património, fomento e animação cultural.

Um desses exemplos mais recentes tem a ver com Guimarães que, em 2001 foi reconhecida pela Unesco, como Património Mundial e em 2012, Capital Europeia da Cultura. Neste contexto, a “cidade berço da nacionalidade” soube atrair um número significativo de visitantes, mas também, mas também, aproveitou a efeméride para promover diversas alterações e melhorias no Centro Histórico desenhado sob o risco do arquitecto portuense Fernando Távora que, com ajuda de uma equipa multidisciplinar, não só renovou a face urbana do velho burgo da cidade, como soube construir novos arrumamentos e equipamentos culturais de grande importância como Centro das Artes José de Guimarães, Teatro Jordão, recuperação de espaços fabris abandonados e reconvertidos em locais de exposição e criação, como a Casa da Memória, Fábrica Asa, do Instituto de Design, do Centro de Criação de Candoso, do Centro Avançado de Formação Pós-Graduada, do Centro de Ciência Viva, entre outros espaços culturais.

A Capital Europeia da Cultura deixou lastro em Guimarães, pois incluiu centenas de eventos que envolveram 25 mil artistas e profissionais, 15 mil cidadãos, 300 organizações, resultando em “mil novas criações e 700 artistas residentes”. Nesse ano foram criados mais de 2 mil empregos e mais de dois milhões de pessoas visitaram a cidade. (Comissão Europeia, 2014, pág, 224)

Antes da cidade de Guimarães viver tempos inesquecíveis, o Porto 2001 Capital Europeia da Cultura também serviu de alavanca para a fruição cultural através de centenas de programas em diversos locais, muitas vezes, fora dos roteiros habituais de acontecimentos, como o Museu do Carro Eléctrico onde, foi levada à cena uma ópera inteiramente interpretada por crianças, “Brundibar”, de Hans Krasa, com a particularidade de ter sido interpretada pela primeira vez no campo de concentração nazi de Teresin, Checoslováquia, tendo a maior parte dos participantes sido mortos mais tarde em Auschwitz.

Ainda no Porto 2001/Capital Europeia da Cultura, a cidade viu construir um notável edifício de arquitectura, a Casa da Música, bem como, a renovação de diversos espaços culturais, Teatro Nacional S. João, Museu de Arte Contemporânea de Serralves, Auditório Nacional Carlos Alberto, Centro Português de Fotografia, uma série de projectos na área da renovação urbana e paisagística de diversas artérias urbanas, praças e jardins.

Se Guimarães e o Porto tiveram um papel de destaque no que diz respeito ao reconhecimento no domínio da valorização dos seus territórios e das artes em geral, outras cidades de baixa dimensão conseguiram criar eventos artísticos e culturais identitários da sua pujança e modo de atrair vários públicos de Norte a Sul do país. Citemos alguns casos: o Festival Internacional de Cinema de Vila do Conde, Festival Internacional de Cinema Documentário de Melgaço, Festival Literário Correntes de Escrita, da Póvoa de Varzim, Casa da Arquitectura de Matosinhos, Festival Internacional de Música de Espinho,  Encontros de Cinema de Viana do Castelo, sem esquecer outros acontecimentos culturais realizados em Óbidos, Marvão, Coimbra.  A este propósito, valerá a pena referir os concertos agendados nesta cidade com a actuação dos “Coldplay” e o efeito positivo na economia local, hotelaria e restauração.”A Câmara de Coimbra garante que a cidade está preparada para quase triplicar a sua população. O impacto pode chegar a 75 milhões de euros” (Expresso, pág. 23, 2023).

Nesta ronda por alguns eventos que, todos anos, atrai um público numeroso e interessado, não podemos deixar de referir Mértola, onde acontece o Festival Islâmico e a vila de  Sines, com o seu famoso Festival Músicas do Mundo, os festivais de música clássica realizados em Espinho, Póvoa de Varzim e Vila Real (Casa de Mateus) bem como os prestigiados certames igualmente dedicados à musica erudita levados a efeito em Sintra, Açores e Madeira, entre muitos outros acontecimentos no “país real”, como tal, longe da macrocefalia lisboeta.

 REGIÃO – - Espólio da Bienal de Cerveira ruma a Itália - O Vilaverdense           XXI Bienal de Cerveira arranca no sábado em versões física e digital

 O sucesso da “Vila das Artes”

 

Um exemplo nacional como as políticas públicas podem ajudar à construção de um projecto cultural, maior coesão territorial, atractividade turística e económica, aconteceu em Vila Nova de Cerveira, no Alto Minho, onde até à organização da Primeira Bienal de Artes, realizada em 1978, impulsionada pelo pintor Jaime Isidoro e galeria Alvarez, do Porto, pouco ou nada acontecia de relevante, a vida centralizava-se no centro à volta da igreja, câmara municipal, algum comércio, meia dúzia de restaurantes e pensões, um castelo/fortaleza e o rio Minho a servir de fronteira entre duas regiões (Norte e Galiza) cujos países têm fortes afinidades comerciais, económicas, culturais.

Quem viajasse do Porto para a Galiza podia parar em Viana do Castelo, mas raramente fazia o mesmo em Cerveira, pois a pacatez da vila pouco tinha para oferecer. Com a concretização da Bienal das Artes e seu projecto cultural, Cerveira ganhou ao longo dos anos estatuto, reconhecimento nacional e internacional, dinâmica económica, comercial e turística, os negócios entre os dois lados da fronteira ganharam outro alento e tanto o Poder Local como o Poder Central, perceberam a importância da “Vila das Artes”, como fermento para a dinamização do território.

(…)“Foi em 1978 que se realizou a primeira Bienal de Cerveira. Já agora conto que o então presidente da Câmara que é o Engº Lemos, pediu ao Jaime Isidoro [pintor, galerista e organizador dos Encontros Internacionais de Arte, levados a efeito na década de 70] o seguinte: “Vê lá se arranjas um acontecimento que ponha Cerveira no mapa”, porque Cerveira até essa época, era um sítio de passagem. Não tinha praticamente história, nem cultural, nem nada que valesse a pena sublinhar” (Memória e Singularidade, FBUP, 2018).

Retenho o precioso catálogo de 1978, as fotos de Almada Negreiros e da sua esposa Sarah Afonso, as obras dos artistas representados na Bienal e textos que, de uma forma ou de outra, ajudam a contextualizar este acontecimento cultural no Alto Minho, na altura, vista por alguns como “uma aventura” e por outros,  uma “ideia de loucos” que não teria muito tempo de vida. Toda a gente se enganou.

“Vila Nova de Cerveira, sangrada de braços jovens, adormeceu potencialidades e encantos que ninguém viu com olhos de ver. Monumentos, características, hábitos e usos – afinal valores históricos e etnográficos de uma cultura própria – quedaram-se, séculos hermeticamente vividos (sofridos) à margem da comunidade e dos conhecimentos nacionais”. (Edgardo Xavier, 1978).

Tive o privilégio de assistir ao nascimento da Bienal, em 1978, registar fragmentos desses anos loucos onde a arte tinha literalmente saído às ruas e acompanhar ao longo dos anos as várias edições. E tudo nasceu através dos V Encontros Internacionais de Arte, levados a efeito em várias cidades do país, como por exemplo, em Viana do Castelo, Póvoa de Varzim e  Caldas da Rainha, onde a GNR interveio devido a denúncias de “atendado ao pudor” e sempre com a teimosia do pintor Jaime Isidoro, artista reconhecido e admirado entre os seus pares como uma referência nacional.

“Desde então, já se realizaram 18 edições. Passados quase 40 anos desde a 1.ª edição, a Bienal Internacional de Arte de Cerveira afirma-se como um dos acontecimentos mais marcantes das Artes Plásticas em Portugal, sendo a Bienal mais antiga do país e a maior da Península Ibérica. Este evento de referência para a cultura artística nacional, de Arte Contemporânea, tendo vindo, ao longo dos anos, a alargar a sua incidência geográfica ao promover exposições em espaços culturais, localizados noutros concelhos do Vale do Minho e da vizinha Galiza. Nomes como José Rodrigues, Henrique Silva, Artur Bual, Albuquerque Mendes, Fernando Lanhas, Paula Rego, Vieira da Silva, Nadir Afonso, António Quadros, Pedro Cabrita Reis, Rui Anahory, Ângelo de Sousa, Amadeo de Souza Cardoso, Júlio Resende, entre muitos outros, passaram pela Bienal de Cerveira. Consolidar e expandir a notoriedade da marca "Bienal Internacional de Arte de Cerveira", apostando na sua renovação, adequando-a às novas realidades criativas, reforçando a sua internacionalização e inserção em redes nacionais internacionais, é o principal desafio”. (site da Bienal de Arte de Cerveira, 2010).

Em 2023 comemora-se 45 anos e a Bienal, com altos e baixos, lá vai fazendo o seu caminho, algumas das pessoas que fizeram parte deste enorme projecto cultural já cá não estão, o pintor Jaime Isidoro e o escultor José Rodrigues, mas a Câmara ao longos dos vários presidentes percebeu a importância deste acontecimento e o Estado, através do Ministério da Cultura e outros organismos públicos e privados não deixaram de apoiar financeiramente e consolidar o projecto.

Na qualidade de jornalista fui convidado para participar, em 2003, no debate intitulado “O Percurso da XII Bienal de Cerveira nos seus 25 anos” sendo intervenientes Jaime Isidoro, José

Rodrigues, Eurico Gonçalves, Francisco Gonzalez, Silvestre Pestana, Manuel Vitorino, José M. Vaz Carpinteira e Henrique Silva, tendo por objetivo “discutir o percurso dos 25 anos da Bienal, “mas sobretudo, traçar um plano estratégico de consolidação no futuro. Foi opinião generalizada que a Bienal de Cerveira muito contribuiu para o desenvolvimento económico e cultural da região e afirmação da arte contemporânea, tendo Jaime Isidoro referido que “a desconfiança das primeiras edições deram lugar à certeza e credibilidade dos nossos dias, numa alusão às reações da população cerveirense às primeiras Bienais,

olhando com desconfiança para o que vinha de fora” (Memória e Singularidade, FBUP, 2018).

 

“Tanto a autarquia, representada pelo seu presidente, José M. Vaz Carpinteira, como os artistas intervenientes e o jornalista Manuel Vitorino, apontaram como principais necessidades para o futuro da Bienal um maior apoio financeiro das entidades governamentais, além da criação de um espaço criado de raiz para albergar o Museu da Bienal e o próprio evento, em suma, um Centro de Artes, apontando ainda para a criação de uma fundação que assegurasse a organização e promoção do

certame. Surgia assim a primeira ideia para a criação de uma Fundação, apoiada por Paulo Dias, então presidente do Instituto de Educação e Psicologia da Universidade do Minho e do então presidente da Região de Turismo do Alto Minho, Francisco

Sampaio, cujos fundamentos seriam uma maior aproximação entre os artistas e o poder central e autárquico” (Correio do Minho, Setº, 2016)

Chegados aqui importa referir que, nem tudo foi um mar de rosas, existiram constrangimentos financeiros de toda a ordem, divergências quanto ao modelo de gestão a seguir e caminhos para alcançar a Fundação capaz de efectuar um acompanhamento pormenorizado e profissional da mostra de arte. A Bienal já tinha ultrapassado fronteiras, ganho prestígio internacional e muitos artistas tinham escolhido a “Vila das Artes” para viver e trabalhar, como foi o caso do escultor José Rodrigues, cuja obra escultórica está bem visível em diversas praças e jardins, ou do artista israelita Zadoc Bem-David, que em 2007, venceu o grande prémio da XIV Bienal de Arte de Cerveira, igualmente, representado em vários locais da vila.

“Justamente nesse ano de 2003, começaram a verificar-se, por parte do poder político autárquico e da própria associação PNDC, insuficiências do modelo de gestão encontrado em 1994, por um lado pelos constrangimentos financeiros resultantes de uma conjuntura económica nacional debilitada, forçando as instituições culturais a reavaliarem a sua estrutura de financiamento, e, por outro, pelo património histórico e artístico que tinha vindo a ser herdado desde 1978, com um espólio em obras de arte com um valor muito significativo. Nesse sentido, após as análises de diferentes modelos jurídicos, que tiveram em conta padrões comparativos de vantagens e desvantagens, chegou-se à conclusão que a criação da Fundação da Bienal Internacional de Arte de Cerveira permitiria dar continuidade a um projeto com um cariz enraizado ao nível nacional, o qual pretendia valorizar a produção artística nacional, face aos grandes centros culturais da Galiza, promover a formação artística através das novas tecnologias e incentivar o turismo cultural da região na Europa e no Mundo” (Memória e Singularidade, FBUP, 2018).

Para o êxito da Bienal e sua internacionalização, não será de estranhar o facto de existir um projecto concertado entre a Autarquia Local, Câmara Municipal de Vila Nova de Cerveira e o Poder Central, nomeadamente, através dos sucessivos responsáveis pela pasta da Cultura. Mas, também, uma articulação e colaboração das várias associações disseminadas no concelho, ranchos folclóricos, grupos de teatro, gente do povo.  E não foi por acaso que, na abertura oficial da Primeira Bienal de Arte, onde se efectuou homenagem a Almada Cerveira e por entre outras de referência da pintura contemporânea, a organização não esqueceu Rosa Ramalho, uma artista do povo, cuja Bienal ajudou a descobrir e projectar a sua vasta obra.

“A qualificação da oferta cultural local depende bastante da dinâmica de variáveis de composição da estrutura socioprofissional, tais como a geração e o género, a formação e a ocupação, os regimes de trabalho, o impacto das mudanças tecnológicas e organizacionais, ou o relacionamento entre agentes e entidades. As funções de intermediação e os mediadores (produtores, representantes, distribuidores, comunicadores, críticos, divulgadores…) são naturalmente centrais, quando se trata de observar a dinâmica de um meio cultural. Um terceiro parâmetro refere-se à internacionalização: como é que a (eventual) circulação e apropriação internacional de projetos e obras tem impacto no desenvolvimento” (Silva, Augusto Santos, 2015).

Hoje, a Bienal de Arte de Cerveira é uma marca identitária da Região e sempre que a iniciativa acontece a “Vila das Artes” enche-se de visitantes, os negócios florescem, as relações transfronteiriças ganharam outro alento e existe um conhecimento mais aprofundado do tecido cultural e patrimonial do concelho. À boleia da Bienal foram construídos mais equipamentos culturais e Cerveira ganhou outra centralidade.

 

“Ao carácter experimental e improvisado das primeiras bienais de Cerveira, pioneiros da performance na praça pública, o que chocou e escandalizou a população local, as posteriores bienais acabaram por se organizarem em espaços mais apropriados para exposições, conferências, debates, espectáculos, workshops, ateliers de gravura, cerâmica, pintura, fotografia, vídeo, computador e artes digitais (…) Se Jaime Isidoro foi a alma da Bienal e o seu principal animador, Henrique Silva acertou as contas, arrumou a casa e criou a Associação Projecto – Núcleo Cultural, desde 1995, com a colaboração de Margarida Leão, Paula Leão e Silvestre Pestana, actual director desta Associação” (Eurico Gonçalves, 2011).

 

O meteorito de Bilbao

 

Existe uma cidade de Bilbao antes e depois da abertura em 1997, do Museo Guggenhim, uma enorme construção de arquitectura futurista de autoria do famoso arquitecto Frank O. Gehry. Quem conheceu a cidade como eu, dantes uma cidade portuária rodeada de indústrias de metalomecânica pesada, fábricas, enorme poluição no ar e no rio que banha o miolo urbano, não poderá ficar indiferente quando, alguns anos depois, visitou a cidade e entrou no Museu que, só no primeiro ano, conseguir atrair cerca de 1, 3 milhões de visitantes de todo o Mundo. É uma cidade radicalmente diferente, mais cosmopolita, aberta à modernidade, ao turismo e aos negócios. O Museo ocupa uma área estimada em cerca de 24 mil m2,  tem um espaço expositivo de 11 mil m2, 19 galerias, dez das quais, desenhadas de forma ortogonal e entre as suas colecções, contam-se cerca de 250 obras de arte de Andy Warhol, Eduardo Chillida, Yves Klein, Willem de Kooning, Robert Motherwell, Robert Rauschenberg e Antoni Tàpies (que Serralves já mostrou aos portuenses) além de outras obras de diferentes correntes e estilos.

 

Perante a magnitude deste empreendimento e os custos estimados em cerca de 90 milhões, muitas críticas surgiram de vários quadrantes, mas os números traduzidos em entradas e os efeitos na economia, mais construções de hotéis, equipamentos ligados à restauração e ao turismo, cedo fizeram arrefecer as vozes mais exaltadas. “O impacto sócio-económico do Museu tem sido surpreendente. Durante os primeiros três anos de operação, quase 4 milhões de turistas visitaram-no, gerando cerca de 500 milhões de dólares em lucros. Além disso, o gasto dos visitantes em hotéis, restaurantes, lojas e transportes recolheram mais de 100 milhões em impostos, o que mais do que compensou o custo do edifício. No entanto, a promessa do "Efeito Bilbao" também provocou uma explosão na construção em todo o mundo, com obras caras que se mostraram imprudentes, considerando a recente crise económica de 2009. No entanto, o Museu continua a ser uma estrutura icónica conhecida pela sua complexidade e forma única”. (Pagnotta, Brian, ArchDaily, 1997).


O efeito Guggenheim tem sido exponencial na economia e na atracção de grandes empresas, como a Google e as lojas Luís Vitton. Em 2014, ou seja, 17 anos após a sua inauguração, o Museo continuava a ter um acréscimo bastante significativo de visitantes e a ser um dinamizador da economia local e de Espanha. “O aumento das receitas da cobrança de impostos da actividade económica rondam os 510 milhões de euros. O museu teve 3,350 milhões de euros de impacto directo no País Basco, existem 5487 empregos mantidos graças ao museu - agora menos devido à crise, ressalva, 65% dos visitantes são de fora.

Somos o museu europeu com maior nível de autofinanciamento e o mais próximo dos museus americanos”, precisa o director do departamento de projectos do Guggenheim basco Xabier Perés Gaubeka. (Cardoso, Joana Amaral, Público, 2014) 

 

Existem outros estudos que quantificam os efeitos do Museo na economia da Região e reveladores da importância que este tipo de equipamentos culturais, neste caso, uma das obras mais emblemáticas de toda a Espanha e da região em particular.

“Após a sua inauguração em 1997, registe-se o facto de seis anos depois, em 2005, o investimento feito já ter sido recuperado. Só em valores gerados pelos ingressos, lojas, restaurantes e cafetarias do Museo, receitas de patrocínio e resultantes de organização de eventos especiais, totalizaram cerca de 26 milhões de euros. O alojamento e o lazer representaram cerca de 139 milhões de euros em 2005”.(The economy of culture in Europe, pág, 152, 2005).

 

Segundo o mesmo estudo que faz uma exaustiva comparação com outros 20 equipamentos de idêntica importância arquitectónica uma conclusão salta à vista: a “velha Europa” está a perder terreno em termos de atracção de número de visitantes para outras partes do Mundo, nomeadamente, para a China, Japão (onde a privatização dos museus é uma realidade, mais ainda a partir de 2001) e EUA. “Os museus são cada vez mais geridos como empresas que competem com outros museus para atrair públicos. Os museus têm de encontrar novos recursos, patrocinadores e desenvolverem planos de negócios, estratégias de comunicação, planos de marketing. Ou seja, essas instituições estão cada vez mais integradas nos mecanismos de mercado”. (The economy of culture in Europe, pág, 152, 2005).

 

Voltado ao Museo Guggenhim de Bilbao, outros números exemplificam de forma concludente os vultuosos investimentos feitos e o retorno que trazem à economia, à sociedade e ao bem-estar da vida das pessoas. “Só a Fundação Guggenhim [espalhada por outras partes do mundo, como Veneza, Nova Iorque, Emiratos Árabes] contribuiu para a manutenção de 4893 funcionários e a criação de 4361 empregos desde a sua abertura. Depois, deu-se outro fenómeno: o fim do isolamento da cidade, tendo Bilbao, tornado uma das mais cobiçadas cidades turísticas europeias, capaz de atrair cada vez mais turistas e viu melhoradas as suas ligações de transporte com o resto do Mundo, criação de novas rotas, renovação do aeroporto [a cargo do conhecido arquitecto Calatrava]  novos negócios e um impacto bastante positivo na vida das populações locais. O Museo é motivo de orgulho e uma inovação para a cidade”. (The economy of culture in Europe, pág, 153, 2005).

 

Outro pormenor a reter neste equipamento de Bilbao  que, conforme foi referido, alterou radicalmente a face da cidade, tem a ver com o facto da equipa de programação acolher outras manifestações artísticas e não apenas arte contemporânea, escultura, pintura, instalações de vídeo,  mas também, a abertura a outras manifestações, concertos de música clássica, minimalista e jazz, mas também, trabalhos de vídeo/arte e  instalações artísticas. Será mais uma forma de potenciar a aberta do Museo a outros públicos, e com isso, obter mais receita de bilheteira. “A programação musical do Guggenheim de Bilbao teve desde o seu início a preocupação de articulação entre a organização de concertos com uma relação directa com as exposições e sua justificação perante o uso dos espaços e também, a apreciação de propostas que, pelo seu carácter audiovisual e coreográfico implicam uma atenção especial com as condições acústicas do Museo” (Muñoz, Maria Hervás,2022).

 

Como Bilbao tem uma programação cosmopolita e bastante plural, registe-se, a título de exemplo, em 2007, a realização de vários concertos de música de compositores bascos contemporâneos, interpretações de música electroacústica, por iniciativa dos Amigos del Museo Guggenheim, onde estiveram em evidência obras tão diferentes de Pege Iges, John Cage, Luciano Berio, Alison Bauld, mais a Sinfonia de Câmara, nº 1 (1906) de Schonberg, entre outras.

Como já foi referido, o Museo tem uma boa situação financeira e o número de visitantes não para de aumentar. No documento que assinala a passagem do 25º aniversário, em 2022, ilustra-se de forma exaustiva a longa actividade levada a efeito nos diversos segmentos de arte e dá-se a conhecer a radiografia económica e financeira da instituição.

“Com respeito aos resultados económicos, o Museo conseguiu manter um elevado nível de auto financiamento situado em 62,5 % e continua cumprindo o seu papel  de dinamizador económico, sendo a sua actividade estimada em cerca de 197 milhões de euros, correspondendo ao PIB em mais de 173 milhões de euros, proporcionando ao Estado arrecadar em impostos cerca de 26,8 milhões de euros, permitindo, igualmente, combinar a manutenção de 3694 empregos” (Vidante, Juan Ignacio, 2021).


 

Conclusão: tanto em Cerveira, numa escala necessariamente muito mais reduzida, como em Bilbao, onde foram investidos cerca de 90 milhões de euros na construção do Museu, os efeitos destes dois casos são bastante concludentes sobre a importância dos governos continuarem a apostar em políticas públicas apontadas para o investimento em equipamentos culturais, mas também, capazes de promoveram a internacionalização e com isso, o fomento da renovação urbana, modernização das cidades, mais turismo e fruição cultural.

 Bibliografia consultada

 Salema, Isabel, Público, 10 de Abril de 2022

Relatório da Comissão Europeia, 2014, pág. 54

Políticas públicas da cultura: Estudo-caso do património cultural na administração pública, Mesquita, Tomás Martins, Estudos e Gestão da Cultura ISCTE /Instituto Universitário de Lisboa. 2015

Silva, Margarida Moreira Barbosa Leão Pereira,  Bienal de Cerveira (1978 a 2007) Memória e Singularidade, Doutoramento em Arte e Design, pág. 447,  Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, 2018.

O Correio do Minho, 3 de Setembro, 2016, pág. 16

Edgardo Xavier, Catálogo da I Bienal Internacional de Arte de Cerveira (5 a 12 de agosto 1978) .

Expresso, Revista, edição 2637, 12 de Maio de 2023.

Sociologia, Problemas e Práticas, nº 78, pp. 105-124;Políticas Culturais Locais: Contributos para um modelo de análise, Silva, Augusto Silva,  FEP, IS-UP, Porto

Site da Bienal, História da Bienal de Cerveira, Eurico Gonçalves, 2011

Pagnotta, Brian, ArchDaily, 1997

The indirect contribution of the cultural & creative sector to the Lisbon Agenda, 2005 Case Study The Guggenheim Museum in Bilbao, págs. 152/157

Conferência Internacional de Património Cultural e Turismo: Conceitos, Realidades e Perspectivas, 2 de Novº, 2014, Universidade Lusófona de Lisboa.

 Deborah Brewste, "Compradores asiáticos ajudam a alimentar o boom da arte da Sotheby's", in Financial Times 8 de Março de 2006

 Journal des Arts, n° 235, 14-27 de Abril de 2006

 Pallavi Aiyar, "Modern Art Grabbing Investors", in The Asian Time, 16 de Abril de 2006,

Música en Los Museos: El Caso del Guggenheim de Bilbao, Muñoz, Marina Hervás, 2022.

Memória e Actividade, 25º  aniversário do Museo, Vidante, Juan Ignacio, 2021

 

 

 


Comentários

  1. Obrigado por compartilhar sua perspectiva perspicaz sobre este tópico!

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  2. Sua postagem foi excelente! Eu realmente gostei. Estou ansioso para ler mais do seu trabalho.

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